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Vasco da Gama

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Autor: Duker Bower

Vasco da Gama (António Lobo Antunes, As Naus)

        Vasco da Gama, enquanto um dos protagonistas do romance As Naus (1988), de António Lobo Antunes, regressa a Portugal no fim do século XX, como se tivesse, sobrenaturalmente, sobrevivido à era dos descobrimentos e vivenciado as consequências históricas do colonialismo português em África, sobretudo a guerra colonial e o processo de descolonização das décadas de 1960 e 1970. A personagem histórica vive no imaginário lusófono como herói nacional, e grande parte de sua fama deve-se à figuração épica de Luís de Camões, n’Os Lusíadas (1572), que elevou as ações do navegador a façanhas sobre-humanas, mediante a imitação de modelos épicos greco-romanos e dos seus dispositivos de sublimação do herói. António Lobo Antunes investe na “sobrevida” (Reis, 2015: 119 ss.) de Vasco da Gama, dialogando parodicamente com o poema camoniano e virando do avesso essa tradição épica (Seixo, 2002: 167 ss.; Reis, 2005: 306).

        N’As Naus, é também Camões, ou melhor, o “homem de nome Luís a quem faltava a vista esquerda”, o responsável por introduzir, numa linguagem carnavalizada (Bakhtin, 1996), a voz de Gama na história: “Urinei à sombra de uma camioneta de fruta (...) enquanto desabotoava a braguilha e o ar se tingia de fragrâncias de pêssego (...). Urinei (...) a pensar no reformado de Sueca [Gama] que se instalava ao meu lado no beliche a exibir fotografias antigas coladas num caderno de escola. Aqui sou eu no cavalo de pasta aos quatro anos, O terceiro a partir da esquerda sou eu na Tropa em Tancos, Esta tirou-me o meu irmão Paulo quando descobri o caminho marítimo para a Índia” (Antunes, 2011: 18).

        A grande descoberta torna-se, então, mais uma entre outras ações comuns do protagonista, e é como um reformado e jogador de cartas que ele entra na história, não a lutar pelo seu país ou a executar atos de bravura, dignos da honraria nacional. Sua matéria existencial é constituída por restos de experiências que remontam a diferentes contextos históricos, em que ocupa posições e funções sociais divergentes, e as suas lembranças individuais dessas várias situações como que legitimam a fusão temporal insólita criada pelo autor para As Naus: “Preparava-me para contar ao rei [Dom Manuel, que o navegador reencontra na Lisboa do fim do século XX] os meus anos de África, o embarque da Tropa, os guerrilheiros que chegavam do interior para ocupar Loanda (...). Queria dizer-lhe (...) do meu regresso a Lixboa num porão de lençóis ensopados de vômito e de enervada miséria” (90).

     O heroico Gama da conquista do Oriente é, assim, também o soldado português que lutou na guerra colonial e retorna para Portugal, em condições precárias, sem reconhecimento e sem títulos, e tenta um emprego no “comércio de solas”, o que amplia sua representatividade crítica em relação ao colonialismo português e à marginalização dos “retornados”.

     Além disso, o próprio destino do protagonista na história aparece de modo controverso, em função de formas dissonantes de organização do enredo. Vasco da Gama passou 50 anos em África (ainda que as informações históricas apontem para cerca de 500 anos), mas só 42 sem ver o rei D. Manuel que permaneceu em Portugal e “meses sem conto” na sala de espera do monarca quando retorna. Hospeda-se num quarto atrás da sapataria do sobrinho em Vila Franca de Xira; conquista, através de jogos de cartas, uma série de bens e, sem nenhuma explicação do narrador, aparece a morar numa vivenda decrépita do bairro econômico de Chelas em Lisboa, que o parlamento decidiu atribuir-lhe por unanimidade pelos serviços à pátria. Também são projetados dois desfechos diferentes para Gama: num primeiro possível desfecho, dorme melancólico em sua vivenda de Chelas; em outro, após ser preso e julgado, termina trancafiado num sanatório.

       O efeito tragicômico da cena da prisão é intensificado pela inversão radical das posições sociais, pois o Rei e o grande herói do ultramar são presos por um guarda de trânsito em função de dirigirem alcoolizados, e tratados, ao fim, como senis e lunáticos: “O polícia considerou desconfiado a coroa de folha-de-flandres com esmeraldas de plástico... – Pelo sim, pelo não, sopre-me aqui o testezinho do álcool (138). Dom Manuel, com seu fiel escudeiro, revela-se como o Dom Quixote de As Naus, com sua coroa de lata, a vociferar que era ainda o “dono do país”, o “proprietário do universo (142), e a sonhar com um mundo de sereias, enquanto são vítimas da chacota e do riso por onde passam: “a gente da cidade, que os não reconhecia, seguia estupefacta aquele casal de anciões mascarados com as roupas bizarras de um carnaval acabado” (89). Também como Quixote, quando tiram suas máscaras, revelam-se vulneráveis e frágeis: Gama “subia a raspar as pantufas no soalho de tacos, despia-se conforme as juntas deixavam (...) dos adereços de nauta sem idade (...) enfiava-se membro a membro num pijama de bolinhas de criança, e ao apagar a luz, os lençóis principiavam a dançar como um pedaço de casco num Índico contraditório” (136). A face heroica de Gama mostra-se, portanto, como uma máscara anacrônica, quixotesca, em choque com o Portugal do fim do milênio.

     Alianças lexicais e semânticas imprevisíveis, rompimentos drásticos de parâmetros conceituais e de convenções narrativas tradicionais – são as dinâmicas motrizes da figuração de Vasco da Gama n’As Naus. Com essa estratégia de transgressão carnavalesca, não só o almirante-mor dos mares da Índia e a tradição colonial portuguesa aparecem intensamente problematizados, mas o próprio processo de invenção dessa tradição e as configurações de poder social, político e cultural legadas pelo colonialismo à contemporaneidade, problemáticas muito caras à ficção de Lobo Antunes.

 

     Referências

     ANTUNES, António Lobo (2011). As Naus. Rio de Janeiro: Objetiva.

     CAMÕES, Luís de (2003). Os Lusíadas. Lisboa: Instituto Camões.

     BAKHTIN, Mikhail (2010). A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. 7ª ed. São Paulo: Hucitec.

     REIS, Carlos (2015). Pessoas de Livro. Estudos sobre a Personagem. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

     REIS, Carlos (coord.) (2005). História Crítica da Literatura Portuguesa. Volume IX. Do Neo-Realismo ao Post-Modernismo. Lisboa: Verbo.

     SEIXO, Maria Alzira (2002). Os Romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote.

[Publicado a 15-02-2025]

Raquel Trentin