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Palma

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Autor: Hugo Bentes, como Palma (Fuga)

Palma (Manuel da Fonseca, Seara de Vento)

        Personagem central do romance Seara de Vento (1958), António de Valmurado, de alcunha Palma, é baseado em António Matos Dias, homem que se vinga do ex-patrão e acaba por resistir às tropas policiais na sua casa no Cantinho da Ribeira. Os eventos relacionados à tragédia de Beja de 1932 servem de mote a Manuel da Fonseca para a criação ficcional da personagem Palma. 

        Este “homem cercado” (Seixo, 1980: 101) apresenta uma atitude de constante agressividade, até nos poucos momentos em que há comida: “Come de olhos fixos no prato, com a expressão quase agressiva” (Fonseca, 1975: 77). Num misto de medo e fascínio, Lina, a filha de Elias Sobral, vê a “figura brutal do Palma, enorme, de punhos cerrados” (142), com a “contida violência máscula”, “os cabelos revoltos, duros”, “o perfil rude”, “o ombro abaulado, poderoso” (140). Sua raiva chega ao paroxismo de a personagem resistir, cercada no seu casebre, aos tiros de metralhadora das forças policiais. Casado com Júlia, filha de Amanda Carrusca, tem quatro filhos com a esposa. Entretanto, apenas os mais novos fazem parte da economia diegética do romance: Mariana, “a única pessoa a ganhar para o magro sustento da família” (45), que se desloca todos os dias ao trabalho e às reuniões clandestinas com os camponeses; e Bento, sempre a baloiçar dentro do forno em ruínas e a chamar a mãe por balbucios. Os filhos mais velhos são rapidamente mencionados em analepse no capítulo 3.

        No conto “Meio pão com recordações”, de O Fogo e as Cinzas (1953), que deu origem aos capítulos 5 e 7 de Seara de Vento, com algumas modificações textuais, Palma é ansiosamente esperado por conta da caça que traria ao casebre onde se encontravam esposa e sogra, e só surge no final da narrativa. O conto centra-se nesta “expectativa” (Fonseca, 1982: 172) da chegada de Palma, numa sequência de tentativa de resolução da fome, ao passo que o romance apresenta dois eixos sintagmáticos: “a sequência da fome e a sequência da vingança” (Seixo, 1980: 96).

          Em Seara de Vento, é a figura “alta, andrajosa” (28) do Palma que ocupa o primeiro plano do romance. Seu percurso narrativo é marcado por eventos como a derruição do forno da família, a perda da courela do pai para Elias Sobral, a acusação de roubo das sacas de cevada de Elias Sobral, a prisão sem julgamento, a impossibilidade de conseguir trabalho (sequências em analepse na primeira metade do capítulo 2 do romance), o contrabando como tentativa de superação da fome e da miséria, a denúncia sobre o contrabando, o assassinato de Elias e Diogo Sobral após a prisão arbitrária de Júlia e seu consequente suicídio na cela, a resistência no casebre sitiado e sua morte no forno derruído. O narrador aposta na configuração de Palma como herói trágico devido à sua resistência aos antivalores daquele espaço alentejano de miséria, injustiça e exploração social, seguindo as coordenadas ideológicas da estética neorrealista. Assim, quando Galrito pergunta a Palma se este quer realmente fazer parte do seu grupo de contrabando de mercadorias para Espanha, o protagonista é peremptório: “Tenho que querer. Esse Elias Sobral … ele e os outros reduziram-me a isto… Não há que fugir. Eles têm tudo, a fortuna e o mando, eles é que põem e dispõem da vida de um homem” (95). São, portanto, “fortuna” e “mando” que esmagam o protagonista ao longo da diegese.

         A consciência de classe, visível no romance pelo discurso de Mariana, apresenta outros investimentos discursivos na adaptação cinematográfica intitulada Raiva (2018), de Sérgio Tréfaut, que faz uso da voz off de Palma em dois momentos importantes da diegese. No primeiro momento, na cena do enterro do pai de Palma, ouve-se a voz off do protagonista interpretado por Hugo Bentes: “O meu pai era pobre como eu. Devia dinheiro aos ricos. Enforcou-se por ser pobre. Enterrei-o na terra, na terra que nos dá de comer”. Mais adiante, na cena da travessia dos contrabandistas no rio: “Os pobres nascem pobres, os ricos nascem ricos. Os pobres morrem pobres, os ricos morrem ricos”.

          Em 2018, Seara de Vento foi levado ao cinema pelo realizador Sérgio Tréfaut, com o título Raiva. 

 

          Referências

          FONSECA, Manuel da (1975). Seara de Vento. Lisboa: Forja.

          FONSECA, Manuel (1982). “Meio pão com recordações”. O Fogo e as Cinzas. Lisboa: Caminho.

          SEIXO, Maria Alzira (1980). “O romance rural na perspectiva neorrealista: Seara de Vento, de Manuel da Fonseca. In: Maria de Lourdes Belchior et alii, Três ensaios sobre a obra de Manuel da Fonseca. Lisboa: Seara Nova, pp. 79-106.

[Publicado a 12-02-2025]

Fernando de Moraes Gebra