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Amanda Carrusca

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Autor: Isabel Ruth, em Amanda Carrusca (Raiva)

Amanda Carrusca (Manuel da Fonseca, Seara de Vento)

        Amanda Carrusca é personagem do conto “Meio pão com recordações” – O Fogo e as Cinzas (1953) – e do romance Seara de Vento (1958), ambos de Manuel da Fonseca. É interpretada por Isabel Ruth na adaptação cinematográfica intitulada Raiva (2018), de Sérgio Tréfaut.

      Sogra do protagonista António de Valmurado (o Palma), Amanda funciona como um pêndulo de valores axiológicos representados pelo genro e pela neta Mariana: “Os seus olhos pequenos, agudos, vão do genro para a neta, interrogando” (Fonseca, 1975: 134). Assim, ora pende para o ódio que sente devido à situação de miséria em que se encontra, ora pondera as palavras da neta acerca da necessidade de união, ao dar-se conta da impossibilidade de um só homem vencer os obstáculos impostos pelos poderes opressores. Amanda Carrusca apresenta significativos traços físicos e psicológicos. Sua “face cadavérica” (26), seus “dedos pontiagudos” (26), seus “movimentos meticulosos” (38), “expressão solene” (38), “rosto anguloso” (38), “mãos descarnadas” (39), “cabelos de um branco sujo sob o lenço puído” (60), “olhar duro”, “voz grasnada” (65), “pernas escanzeladas” (73), “perfil arruinado pelos anos” (78), “andrajos negros” (253), “corpo seco e chato” (253), “só ossos” (253) revestem-na de um aspecto quase sobrenatural. A personagem é marcada por uma iteração de uma peça de indumentária, o “bioco do lenço” (76), que parece servir de moldura ao “rosto anguloso”.

        O “olhar agudo” (82) de Amanda contrasta com o “olhar humilde” (83) de Júlia. Ao contrário da passividade da filha, Amanda chega a desafiar o genro e decide ir à vila (capítulo 1) com o intuito de pedir esmolas para o neto doente. No epílogo da narrativa, auxilia o genro no combate às tropas policiais, embora consciente dos valores da neta: “Não é para matar que ela sustenta que a gente deve unir-se, é para podermos viver (…). Mas… isto aconteceu-te, e eu fico. Poderei ajudar-te, já não estarás tão só” (247).

       Guardiã de crendices populares, como a acção de benzer uma “infusa cheia de água” com “uma oração consagrada a Santa Luzia” (42) e destinada a retirar um líquido esverdeado que gruda as pálpebras do neto, também é guardiã das memórias de um outro tempo. Amanda Carrusca demonstra não aceitar as consequências da mudança de um modo de produção agrário praticado por “aquela raça dos lavradores antigos” (63) para um modo de produção capitalista-industrial praticado pelos “de hoje” (63).

       Tanto no capítulo 5 de Seara de Vento como no conto “Meio pão com recordações”, escutam-se as réplicas de Amanda e de Júlia, porém são falas alheadas, como se cada uma “falasse para si própria” (60). As réplicas de Amanda nesta cena, ausente na adaptação cinematográfica, transportam-na a um tempo muito mais distante, em que os lavradores, ao ouvirem os camponeses cantar as Janeiras, davam-lhes “chouriços, paios, bocados de lombo” (61). A percepção da sua miséria actual leva-a a sentimentos de raiva e ódio. A morte de Júlia na cadeia fá-la exclamar: “Estou cheia de ódio” (207). Destarte, Amanda, com suas “feridas deixadas por dolorosas recordações” (60), representa a raiva diante de um acúmulo de privações e injustiças, o que explica pequenas atitudes de violência dirigidas ao neto e ao gato da família, como se esses impulsos acumulados precisassem extravasar-se para aliviar suas tensões. É significativa a cena em que, numa discussão com Mariana acerca do posicionamento da neta de querer “acabar com esta miséria em que vivemos. Nós e os outros” (119), Amanda é inquirida sobre o que teria feito para acabar com a injustiça social. A velha sente-se picada pela curiosidade acerca das reuniões dos camponeses e pelo desafio de Mariana acerca da possibilidade de mudança na estrutura social por meio de uma incipiente organização sindical. Sua transformação ao longo da diegese expressa-se no grito final dirigido aos camponeses: “Digam à minha neta! Digam-lhe que ela tem razão! Um homem só não vale nada!” (252).

       Na economia interna do romance e do conto, Amanda Carrusca representa um outro tempo e um outro modo de organização social, um modo de produção rural anterior ao capitalismo, em que os latifundiários, para parecerem generosos, davam de quando em quando um pouco mais de comida aos trabalhadores. Todavia, a sua raiva, oriunda das privações acumuladas na velhice e das situações de abuso policial que culminam com a morte da filha, acaba por se transformar, no decorrer da diegese, em uma incipiente consciência de organização social.

 

Referências

FONSECA, Manuel da (1975). Seara de Vento. Lisboa: Forja.

 

[Publicado a 12-02-2025]

Fernando de Moraes Gebra