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Lelito

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Autor: Ilustração de Bernardo Marques

Lelito (José Régio, A velha casa. I – Uma Gota de Sangue - As Raízes do Futuro)

O primeiro volume do romance de José Régio A Velha Casa, publicado em 1945, apresenta-nos logo no início a personagem Lelito, um jovem entre os dezassete e os dezoito anos, estudando melancolicamente no salão do colégio, no Porto, onde está desde há seis dias, como aluno semi-interno, e já cheio de saudades da casa de família, na aldeia. De seu nome completo Manuel Maria de Sousa Trigueiros, apenas conhecemos até certa altura o diminutivo familiar, o que acentua o seu caráter doce e ingénuo, face aos colegas sarcásticos que encontra. Esta disposição melancólica da personagem vai manter-se ao longo de toda a narrativa Uma Gota de Sangue. A focalização a que temos acesso é quase sempre a de um narrador omnisciente, mas integrando por vezes a focalização interna da personagem principal, que se situa entre a comiseração pessoal e uma perspetiva bastante crítica sobre si própria.

Lelito disfarça o seu constrangimento junto dos colegas com um ar de superioridade e não consegue integrar-se; o que para os outros é divertimento, para ele é baixeza ou malvadez. É sujeito a várias situações de escárnio e até de humilhação pelos outros rapazes, mas um deles, Pedro Sarapintado, anima-o, dizendo-lhe que é tudo paródia.

Ao fim de alguns dias, torna-se amigo desse colega, assim como de Olegário, um rapaz tímido que é também colocado à margem pelos outros. Apesar disso, à medida que os dias e as semanas passam, Lelito sente cada vez mais saudades de casa, sobretudo da madrinha Libânia e da criada Piedade. A sua natureza retraída, intelectual, leva-o a dizer a Pedro que se sente ridículo: “Falta-me naturalidade… não tenho graça nenhuma… Vê se compreendes! Não compreendes isto?” (Régio, 2002: 53). Lelito gosta de se isolar para ler, no recreio, mas todos o ridicularizam, até os prefeitos do colégio que têm a tarefa de vigiar os rapazes. Só um deles, Bento Adalberto, o admira, porque também gosta de ler e sobretudo de filosofar. A personagem principal surge, assim, apesar do seu isolamento, como um porto de abrigo para Olegário e para este prefeito.

Ora, Lelito começa a ser um “espectador de si próprio” (62) e principia a desdobrar-se. Mais significativo ainda para a caracterização desta personagem é o facto de começar a “recorrer à orgulhosa volúpia do sofrimento” (62). É caracterizado pelo narrador omnisciente como tendo um “modo terno, quase púdico, envolvente” (64), o que demonstra uma bondade autêntica e uma distinção pessoal. Mais maduro do que os companheiros, Lelito tem consciência de que, apesar de tudo, dentro de si brotam forças negativas, como ódio, hipocrisia, violência e isso aflige-o. Vive dividido entre estes dois polos, que incluem também a preocupação em sentir poucas exigências físicas a nível sexual e por outro lado uma aversão aos prazeres a que outros se dedicavam em casas de prostitutas. Os colegas chamam-lhe “menina”, “porém, ele sabia que era um homem, um homem a valer, - e que um homem a valer é o ser mais delicado da criação…” (115).

Quando Adélio tenta forçá-lo a uma relação homossexual, Lelito luta com ele furiosamente, apesar do seu ar franzino. Passa a ser olhado como uma espécie de herói que defronta os arrogantes que todos temem. Mas Lelito mortifica-se com tudo, reflete sobre a maldade dos homens e nascem em si dúvidas sobre a existência de Deus. A mágoa por o pai não o compreender quando é chamado ao colégio, por causa da luta em que o filho se envolveu, deixa-o completamente desesperado. Decide que tem de fugir daquele espaço que o sufoca e quando uma noite consegue fazê-lo, no meio de um grupo que sai sorrateiramente do colégio com o conluio de um dos prefeitos, oscila de novo entre a felicidade de se sentir livre e a ansiedade e o terror de caminhar sem destino pelas ruas desconhecidas da cidade.

Quando regressa à aldeia (o narrador permite ao leitor perceber que terá, afinal, sido uma prostituta que o encontrou na rua e o ajudou…), desmaia junto à porta de casa, é acolhido pela criada Piedade, que fica em pânico por ver o “seu menino” doente e exausto. Acorda e, antes de desmaiar de novo, vê os rostos daquelas que sabe que o protegem e murmura os seus nomes: “- Mãe… Piedade… (…) madrinha Libânia…”. E o seu pedido é só um: não voltar para o colégio; não deixarem que o pai o envie de novo para o colégio.

A personagem acentua, assim, ao longo da narrativa, as características essenciais da sua personalidade, sem que se dê uma transformação significativa no volume Uma Gota de Sangue. Veremos a sua evolução nos volumes que se seguem.

 

Referência

Régio, José (2002). A Velha Casa. I – Uma Gota de Sangue - As Raízes do Futuro. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

Maria da Natividade Pires