Ainda que seja uma personagem secundária em O Susto (1958), de Agustina Bessa-Luís, Álvaro Carmo ocupa um espaço preponderante na economia do romance. Álvaro Carmo é a (re)figuração à clef de Fernando Pessoa. O nome epigramático poderá remeter não só para Álvaro de Campos, mas também para Alberto Caeiro, dado que partilham as iniciais.
José Maria Midões encontra o seu adversário literário na cidade de Lisboa, nos subúrbios das casas de pasto e da fadistagem: “Assim foi como o poeta tomou o hábito de passear sozinho por esse mundo do fado e onde deparava ora com versos, ora com bêbados cuja face suada e branca parecia uma lanterna em que estivesse pintado um fantasma de Hokusai. Assim encontrou Álvaro Carmo” (Bessa-Luís, 2019: 118).
Logo de seguida, a narradora apresenta Álvaro Carmo, procedendo à sua figuração no que diz respeito ao aspeto físico e ao comportamento, realçando objetos e características facilmente identificáveis em Fernando Pessoa: “Estava completamente embriagado, e o seu chapéu de coco, pousado como metade dum queijo na aba estreita, parecia ir cair desamparado na rua chuviscada. (…) Tinha um bigode quadrado, um sobretudo preto muito curto e essa intransigência de toilette que só se encontra num inglês de classe média; parecia mesmo um pouco estranho, não nesse meio rufia e temerário, com meretrizes e cães que se espulgam no soalho enquanto que a humidade se lhes evapora do pêlo raso, mas estranho nessa atmosfera nacional” (118-119).
Álvaro Carmo é um deambulador notívago, lembrando Bernardo Soares. O poeta parece não gastar demasiado tempo a pensar nas divergências com José Midões, aproveitando as noites e a insónia para escrever. São de realçar as diferenças entre Álvaro Carmo e José Maria Midões no que diz respeito ao espírito do lugar e à maneira como encaram o fazer poético. Para aquele, a vida acontece na cidade com o seu bulício noturno de cafés e álcool, sem interesse algum pela inspiração romântica, enquanto que para o segundo, associado ao Norte de Portugal, à região do entre Tâmega, Marão e Douro, a vida é mais tranquila e regida pelas estações e pelo terror sagrado das paisagens.
Nesse encontro fugaz, entabulam um diálogo intermitente mas simbólico. O poeta da Casa da Obra “pensava, com cólera absurda, no amigo. Via-o pouco e quase sempre demasiado bêbado” (122) para poder conversar. É a partir da ausência de Álvaro Carmo, e através de focalizações internas de Midões, que temos acesso ao perfil do poeta: “Não viu o amigo durante uns dias, e sempre o apoquentava aquele azedume ferido contra a sua poesia, cerebral demais e em que não reconhecia esse poder do devaneio e a irrealidade que tanto amava. «Se não é espontâneo não é livre» – escreveu num artigo que lhe propuseram e no qual marcou, quase verrinosamente, o seu desacordo com Álvaro Carmo. (…) Cada vez vivia mais arredio, mais afundado numa solidão impertinente e a que a morte da mãe, que nunca o amara, dera quase legitimidade. Habitava numa casa de hóspedes, depois num quarto de família que escandalizava com a sua bebedeira constante e aquele andarilhar miudinho até horas mortas, quando a insónia o tomava e ele passeava de um lado para o outro” (120-122).
A personagem surge constantemente embriagada, mas jamais desprovida da capacidade de argumentar e expor as suas ideias, morrendo “no hospital” (123), como acontecera com Fernando Pessoa.
Os diálogos recuperados a partir da memória de Midões nos seus momentos finais são o resultado da paixão da ausência, mas também da criação da escrita de Caeiro e companhia heteronímica, como reação à poética de Teixeira de Pascoaes: “– Insistes demasiado nas coisas gerais, como é o não ter metafísica, banalizar o homem e desejar todas as metamorfoses da matéria. Isso não tem importância. Terás muitos leitores, muitos que te admiram porque lhes dizes aquilo que os sentidos já conhecem. (…) –Não sinto com o coração – disse Álvaro Carmo –, mas com a imaginação. – Vives com as palavras. E, quando sentes, já não és tu, mas elas que se apropriam dos sentimentos. O outro olhava-o, com os olhos turvos e tranquilos, rodando sobre a mesa o copo de vinho tinto. Parecia agora quase diáfano, com aquele rosto branco e o recorte caricatural do seu chapéu de coco sobre o qual brilhava a luz amarela do bar” (231-232).
Álvaro Carmo é, portanto, uma refiguração feita sobrevida do poeta dos heterónimos num tempo anterior ao fenómeno Pessoa.
Referências
Besa-Luís, Agustina (2019). O Susto. 3ª edição. Prefácio de António M. Feijó. Lisboa: Relógio D’Água.
[publicado a 23-12-2024]