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Horácio

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Autor: Capa da 1ª edição da Guimarães Editores

Horácio (José Maria Ferreira de Castro, A Lã e a Neve)

Horácio é o protagonista de A Lã e a Neve (1947). Tropa na região de Lisboa, pastor em Manteigas e operário têxtil na Covilhã, é uma personagem evolutiva com três fases distintas. A marca indelével de um romance de formação (Bildungsroman) caracteriza esta obra, bem como as duas faces da Serra da Estrela – pastoral e industrial (Carvalho, 2016b, p.332) – as quais, por sua vez, constituem a personificação das faces do protagonista. Horácio, herói em crescimento, depara-se com o seu processo de desenvolvimento interior, no confronto com personagens e acontecimentos exteriores.

Luta, sonho, sacrifício e tenacidade são as principais caraterísticas de Horácio, que passa por várias contrariedades: o serviço militar em Cascais; os atritos familiares e relacionais relativos a questões matrimoniais; os desafios do ofício de pastor; a tentação do fogo posto; o emprego na fábrica; a tempestade na neve; as greves e as lutas sindicais; o concurso perdido das casas novas num bairro social; as mortes de dois companheiros, Ravasco e Marreta.

Chegado de Lisboa, Horácio conta a Idalina como a experiência no quartel foi transformadora, porquanto lá aprendeu a ler, a escrever e a sonhar. As casas luxuosas, com jardim, no Estoril e na Parede desencadeiam no protagonista o anseio de construir um belo futuro: primeiro criar condições, estrutura; ter uma casa pequena e humilde; depois casar e ter filhos. Esta aspiração de realização pessoal será o motor do romance e impulsionará Horácio num trajeto de evolução interior/individual e exterior/coletivo.

O desejo de adiamento do casamento com Idalina provocará conflitos envolvendo ambas as famílias, pois Horácio chega com uma noção de vida diferente da de quem nunca saiu de Manteigas. A vontade de abandonar a vida de pastor para trabalhar numa fábrica agiganta-se a cada página. Outro conflito prende-se com a aliciante proposta do fogo posto, feita por Tóino, que gera uma condescendência entre os pastores e um desvanecimento da amizade entre os dois. Apesar da recusa dessa proposta à margem da lei e do insucesso das primeiras tentativas de emprego numa fábrica, um amigo consegue-lhe, enfim, um posto de trabalho numa fábrica de lanifícios na Covilhã.

Os desafios de trabalhar longe de casa começam na acomodação arrendatária de Júlia e Antero, onde Horácio, longe de Idalina, vivencia falta de intimidade e, mais à frente, recebe dois avisos de aumento da féria. Horácio dá início ao seu percurso na fábrica como pegador de fios e depois como tecelão, tendo sido instruído neste último ofício por Marreta. Figura paternal, culto, esperantista, vegetariano, Marreta desempenha um papel preponderante na linha evolutiva do protagonista, pois contribui para a tomada de consciência operária e sindicalista, ressignificando as intenções pessoais em coletivas. Contribui também para o robustecimento da verticalidade, manifestadas pela humildade, honestidade e maturidade que norteiam o seu caminho e medem a sua pontual ambição (quando tenta ultrapassar Dagoberto na fábrica) e subserviência (quando um representante suíço de teares visita a fábrica, acompanhado pelo patrão Azevedo e Sousa). A par dessa parceria de amizade e camaradagem, surgem outras figuras similares (Tramagal, Ricardo, João Ribeiro, Gabriel Alcafoses) que lutam contra as injustiças dentro e fora da fábrica: fazem parte dos comités da greve sindical; trocam livros e correspondência, inclusive com camaradas no estrangeiro, e debatem as últimas notícias da guerra.

Na terceira parte da obra, aparece-nos um Horácio inicialmente feliz, orgulhoso da sua condição de casado e crente num futuro mais digno. Porém, instalados num casebre insalubre na Covilhã, e perante os vários desafios de recém-casados (gestão doméstica e orçamental, ausência de Horácio, nascimento de um filho e risco de gravidez de um segundo), as dificuldades vão-se agudizando. Para ajudar nas despesas, Idalina torna-se aprendiz de esbicadeira, conseguindo um emprego na fábrica Renovadora, o que gera algum despeito em Horácio, por se encontrar noutra menos conceituada. Será neste momento da intriga que Horácio chega a tecelão e perde o concurso da casa nova; Marreta falece; a guerra acaba; o turismo de neve ressurge; e a indústria dos lanifícios intensifica-se.

O contexto laboral precário e disruptivo; as condições climatéricas adversas; a falta de descanso, de recursos e de dignas condições habitacionais - provocam incertezas e angústias e uma acentuada revolta no protagonista. Tudo isso e a consciência adquirida de operário que faz parte de um movimento ativo de transformação social torná-lo-á numa personagem em permanente construção da identidade, e em busca da compreensão mais ampla do mundo. Subentende-se que estas lutas bem como o seu processo de aprendizagem não terminam, conforme o final do romance nos sugere: “Precisamos de continuar...”.

Referências

Castro, Ferreira de. (1990). A Lã e a Neve (15ª ed.). Guimarães Editores.

Calheiros, Pedro. (2004). A Lã e a Neve: testemunho corajoso sobre homens ousados. Castriana: Estudos sobre Ferreira de Castro e a sua Geração, (2), 103-134.

Carvalho, Ana C. L. M. de. (2016b). Capítulo 9. A Lã e a Neve e a Serra da Estrela. Terra Nativa: A relação eco-humana na vida e na obra de Ferreira de Castro, 329-393. (Tese de doutoramento, Universidade Nova).

Rosa, José M. S. & Alves, Ricardo A. (2017). A Lã e a Neve de Ferreira de Castro: releituras, travessias, metamorfoses. Universidade da Beira Interior.

[publicado a 28-11-2024]

Cristiana Oliveira