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Cláudio

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Autor: Edição de capa dura da Bertrand Editora

Cláudio (Vergílio Ferreira, Até ao fim)

Cláudio, protagonista-narrador do romance Até ao fim (1987), de Vergílio Ferreira, tem sua figuração dependente de um discurso rememorativo e reflexivo sobre a própria existência. Sua narração projeta-se a partir de um diálogo imaginário com seu filho Miguel, recém falecido, situação-limite que aciona um turbilhão de lembranças fragmentárias, entremeadas, sobre sua infância na aldeia, sua juventude universitária em Coimbra, sua vida familiar e profissional em Lisboa, todas as fases marcadas por significativas mortes e perdas, como a de seus pais, de seu primeiro amor e de Tina, a velha criada da família que ele considerava como uma “segunda mãe”.
Entre a recordação e o sonho, a vida do protagonista surge como “uma ficção interna, virada para dentro”, banhada de comoção (Ferreira, 2009: 79). Simbólico de sua condição existencial é o espaço-tempo de sua enunciação – o limiar entre a noite que finda e o dia que está nascendo; entre o ambiente sacro e silencioso da capela em que vela o filho, situada ao alto de uma escarpa, e o horizonte da cidade, o rumor do mar; entre a morte e a vida; o passado e o futuro: “Mundo do início, tudo vai começar de novo pela primeira vez − estarei eu preparado?” (12).

A unidade subjetiva de Cláudio ganha contornos no relacionamento amoroso com três mulheres: Oriana, o amor de juventude que a morte lhe roubou, e que assim permanece idealizada, renascendo, repetidamente, na narrativa como uma imagem etérea, diáfana, “ficção mítica” da sua “fadiga” (47); a professora Flora, mãe de Miguel, que lhe desperta uma forte atração física, mas que lhe é avessa em tudo na personalidade; e a jornalista Clara, que ganha evidência ao final da história como uma possibilidade de harmonia e redenção. A figura de Cláudio define-se, principalmente, pela caracterização contrastiva com Flora, a qual resulta numa certa problematização das relações de gênero tradicionais, já presente em outros romances de Vergílio Ferreira. Mulher “serena segura majestática”, avessa ao estereótipo de “boa mãe” e “dona de casa”, Flora impõe sua força a Cláudio e, de acordo com isso, opta pela separação e deixa o filho sob a total responsabilidade do pai: “Ela dizia decidi e eu ficava calado” (42).

Essa resignação de Cláudio também é notória no modo como, depois de repetidas reprovações em Direito, deixa-se influenciar pela sugestão da mãe de que se formasse em Jornalismo. A fala espectral de Miguel – que ecoa, afinal, a autoavaliação de Cláudio – indica a consciência disso: “Nunca te sentiste jornalista como ela julgava. Era demais para ti. Ser independente. Cortar com todas as submissões. Ser livre como Deus” (23). Por isso, todo o assombro do protagonista ao se reconhecer “encarregado da educação do Miguel” (149), impelido a tomar decisões e agir de acordo com os seus princípios no cumprimento dessa função.

“Sempre enrascado de moralismo, sempre entalado de dever” (46), Cláudio convive com a impotência diante da tarefa de ensinar sua concepção existencial e moral ao filho, que se mostra firmemente avesso a ela: “Não me venhas com metafísica. O pai e a mãe e o amor filial. A metafísica da descendência [...] Estou farto de hipocrisias, de convenções sociais” (24). Não sem lutar pela recuperação do filho, Cláudio acompanha, perplexo, a entrega paulatina de Miguel à morte ao escolher um destino de drogas, atos ilícitos e transgressões sociais que acaba por lhe custar a vida, num confronto com a polícia.

O diálogo solitário de Cláudio com o espectro de Miguel revela-se, assim, como uma forma de lidar com o fracasso do seu processo de autoafirmação perante o filho; como um acerto de contas com o não resolvido, com o que ainda lhe dói: “Quis ficar. Esgotar a minha relação com ele. Levar ao fim toda a possibilidade de esclarecimento [...] purgar-me” (46). Concluído o ciclo da vigília, desoprimido da presença fantasmagórica dos seus mortos queridos, Cláudio está pronto para renovar o sentido de sua existência ao lado da figura solar de Clara, mensagem de esperança que sobressai do último capítulo da narrativa.

Portanto, nesse romance, Vergílio Ferreira amplia o desenvolvimento dramático do mote da morte do filho, já presente em outras obras suas, associado a um agudo e sensível enfrentamento do tema da alteridade. Nesse sentido, ganha uma certa graça a zanga de Cláudio com seu “pai”, a propósito de uma entrevista com Vergílio Ferreira, que pode ser definida como uma transposição metaléptica (Genette, 1995; Reis, 2018) entre ficção e vida, a pôr em causa o vínculo entre criador e criatura: “Irrita-me um pouco esse V. F. [...] sobretudo detesto-o por se parecer comigo, pelo que detesto também em mim, a emoção fácil, o vício reflexivo” (Ferreira, 2009: 183). Para além disso, a caracterização de Cláudio, contraposta à de Miguel, permite entrever um conflito de gerações de ordem sociológica-educacional que demarca a “inquietante liquidação de um tempo”, a mudança de paradigmas vislumbrada na virada do milênio (Botelho, 1987), a que não fica alheia uma certa concepção de Arte (aspecto ironicamente tematizado no romance a partir de uma visita de Cláudio à escultora de vanguarda Lalá e de uma entrevista ao maestro de música experimental, Lili).

 

Referências

BOTELHO, Fernanda (1987). Recensão crítica a Até ao fim, de Vergílio Ferreira. Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n. 99. p. 96-97.

FERREIRA, Vergílio (2009). Até ao fim. Lisboa: Quetzal.

GENETTE, Gérard (1995). Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. 3ª ed. Lisboa: Vega.

REIS, Carlos (2018). Dicionário de estudos narrativos. Coimbra: Almedina.

 

[publicado a 27-11-2024]

Raquel Trentin

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