Personagem de Pequenos burgueses (1948), de Carlos de Oliveira, D. Álvaro, último varão de uma família nobre, consegue sobreviver financeiramente às mudanças na estrutura socioeconómica da Gândara devido às suas estratégias de trapaças nos negócios com cavalos. Possui solar em Corgos e casa de campo em Fonterrada. Tal como as demais personagens do romance, é apresentado detalhadamente em um dos capítulos. Ao longo da diegese, vemo-lo elaborar mentalmente a sua teoria sobre a vida, em situações nas quais predominam o segredo, o disfarce, a máscara e o engodo.
Sua teoria sobre o funcionamento da sociedade em que está inserido, com uma visão “de cima” (Oliveira, 2005: 47) e, portanto, mais distanciada emocionalmente dos eventos, alicerça a possibilidade de compreendermos D. Álvaro como a única personagem do romance que se adapta aos movimentos da História e às circunstâncias do jogo da vida, sabendo encontrar no acaso as oportunidades. Embora declare a uma prostituta que “a respeitabilidade não me interessa em si mesma” (96), salvaguarda as aparências devido aos interesses nos negócios. Negociante de cavalos, pretende, tão logo termine a 2ª Guerra Mundial, vender automóveis.
Ao contrário dos demais capítulos, nos quais, por meio da focalização interna, as percepções, os pensamentos e os sentimentos das personagens se espraiam pela tela do romance, na apresentação de D. Álvaro, o narrador opta pelo sumário narrativo acerca da sua genealogia, o que é feito em alíneas, cada uma referente a um dos membros da linha sucessória.
O “brasão duvidoso” da genealogia do fidalgo compõe-se de antepassados ligados ao Santo Ofício, à usurpação de propriedade intelectual mediante compra, aos gastos excessivos de dinheiro, ao “rapto de negros no interior e venda em S. Paulo” (52). Um inesperado retorno de D. Diogo a Corgos, com o filho D. Álvaro e “uma criada mulata que morreu logo a seguir” deixa margem a mais dúvidas: como poderia ser D. Diogo descendente da linhagem de D. Teodósio, se este desaparecera “no sertão, sem filhos legítimos ou legitimados?” (52) O narrador não apresenta uma resposta definitiva, pois chega a marcar o texto com pontos de interrogação. Todavia, ao descrever “os lábios grossos, o cabelo meio encarapinhado” (53) de D. Álvaro, filho de D. Diogo, sugere uma ascendência africana, relacionado ao processo de miscigenação forçado que ocorria entre os capitães do mato e as escravas africanas.
Além de D. Álvaro ser apresentado em capítulo específico, suas teorias expõem-se em monólogos interiores seus e de outras personagens. Sua fama de trapaceiro no comércio de alimárias constitui mote para histórias contadas por mestre Horácio a Raimundo. Faz parte do “círculo fechado” (39) do jogo no Café Atlântico, sinédoque do jogo textual do romance. Não trapaceia no jogo, pois o considera como um dos três elementos da sua teoria da alma, “o álcool, o amor, o próprio jogo” (54), a oscilar entre “a tentação” e o “verdadeiro sabor da vida” (54).
D. Álvaro busca “tornar o pecado impossível pelo exercício inteligente do pecado” (55). Sua teoria faz com que atue de forma comedida no jogo, no amor e na bebida, de forma que essa personagem funciona como um orquestrador do(s) jogo(s) sociais dos pequenos burgueses: “Rasgar um véu e espreitar. A importância do véu reside exatamente no facto de ser preciso rasgá-lo para ver melhor. Como as aparências” (127). Embora o comunista João Viegas atribua a esse sistema uma alienação do fidalgo em relação aos processos sociais e políticos de 1943 – ano em que ocorre a acção romanesca –, D. Álvaro enxerga o que está por detrás das aparências e usa essas informações para seu proveito financeiro.
Na economia interna do romance, D. Álvaro funciona como eixo paradigmático do jogo nas relações do indivíduo com as cartas, a bebida e o amor, sendo suas ações e as das demais personagens a atualização sintagmática desse sistema em que predomina o acaso, a imponderabilidade, a sagacidade, o disfarce e o engodo, elementos que dão sustentabilidade aos jogos de representação social e aos de representação narrativa, pois Pequenos burgueses, com seus espelhamentos sintático-semânticos, parece chamar-nos a atenção para o seu próprio processo composicional, ou como diria Carlos de Oliveira, “um texto diante do espelho: vendo-se, pensando-se” (1979: 206).
Referências
OLIVEIRA, Carlos de (1979). O aprendiz de feiticeiro. Lisboa: Sá da Costa.
_____. (2005). Pequenos burgueses. Lisboa: Assírio & Alvim.
[publicado a 25-10-2024]