Pedro Serra, personagem principal do romance de José Régio Jogo da Cabra Cega, publicado em 1934, ilustra um tipo de personalidade cuja forma de estar na vida pode ser simbolicamente representada pelas características do jogo infantil para o qual o título da obra remete. No jogo, uma criança de olhos vendados tenta apanhar um dos outros participantes e descobrir quem ele é. Depois de ter os olhos vendados, alguém faz rodar sobre si própria a criança de forma a que ela fique mais desorientada espacialmente e tenha maior dificuldade em saber para onde se dirigir e em agarrar um dos companheiros, sendo que cada um foge em direções diferentes. O facto de o título do romance se associar a uma brincadeira de crianças pode permitir-nos considerar que as incoerências de comportamento e a instabilidade emocional de Pedro Serra estão relacionadas com uma personalidade pouco consistente, que não se compreende a si própria pela falta de maturidade. No entanto, este é um jogo que também já foi aristocrático, do séc. XV ao séc. XIX, como a pintura de Goya, La gallina ciega, por exemplo, de 1788, ilustra, o que nos permite também pensar na artificialidade que domina muitas vezes o comportamento de Pedro Serra.
Esta personagem é um jovem com origem social modesta, aldeã, mas relaciona-se, na cidade, com outros rapazes de origens sociais mais elitistas e, apesar dos estudos superiores que fez, não consegue assumir com normalidade as suas origens, nem relacionar-se de forma equilibrada com o grupo de amigos com quem se encontra regularmente, grupo esse que se compraz em alardear intelectualismo e cinismo. Vive numa pequena cidade de província, ganha pouco, dando explicações, e arrenda um quarto na casa modesta de uma mulher viúva. Temos acesso aos comportamentos, sentimentos, reflexões e obsessões de Pedro Serra através de uma focalização interna da própria personagem, num discurso em primeira pessoa. No entanto, nas contínuas discussões conflituosas com os amigos, nos encontros sobretudo em cafés, que o narrador regista pormenorizadamente, são referidas as opiniões dos amigos, numa alternância de focalização que é, afinal, sempre filtrada pela do protagonista. O exibicionismo intelectual é uma contante nas conversas do grupo e Pedro Serra procura sempre a concordância dos outros. A sua necessidade de aprovação, de se sentir admirado leva-o a tentativas de aproximações ora de uns, ora de outros, como no jogo da cabra cega, tentando ocupar um lugar na roda que afinal não sabe qual poderá ser.
As discussões filosóficas em ambiente boémio, muito ao gosto das tertúlias da década de 30 do séc. XX, dominam as conversas do grupo, mas é o surgimento de uma personagem inusitada, de ar distinto e ambíguo, Jaime Franco, que vai trazer o desequilíbrio às relações entre estes jovens. Esta personagem, que surge logo no capítulo II, com o título “Um desconhecido”, parece ao protagonista alguém que já conhece. Compreender-se-á mais tarde o porquê desta sensação de familiaridade.
Pedro Serra sente-se fascinado por ele logo da primeira vez que o vê. A sua necessidade de ser aceite pelos outros ganha uma dimensão obsessiva no que diz respeito a Jaime Franco, de tal forma que chega a escrever um longo texto sobre este, no qual, posteriormente, se reconhece a si próprio. O que admira e também aquilo de que sente repulsa em Jaime corresponde, afinal, ao que ele próprio é. Daí o domínio que o novo membro do grupo consegue sobre ele e a inquietação, irritação e até azedume que desse o início nele despertou.
Quando Jaime se mostra hediondo nas relações sociais, amorosas, na falta de limites de respeito pelos outros, no voyeurismo, promovendo até essas situações para extorquir dinheiro àqueles que são desprevenidamente apanhados na invasão da sua privacidade sexual e adúltera, Pedro Serra sente um mal-estar que lhe provoca até vómitos, mas não consegue deixar de se sentir preso a esse homem. Jaime é, afinal, de forma assumida, aquilo que Pedro Serra é de forma tímida, não completamente concretizada, porque não consegue chegar aos extremos de desprendimento em relação aos outros que são indiferentes para Jaime Franco: “(…) A despeito dos artifícios, das insuficiências, das invenções, das deformações, dos desvios, - eu estava ali vivo e descomposto (quem ali estava era eu!), naqueles papéis em que me propusera interpretar Jaime Franco.”, conclui Pedro Serra depois de ouvir o próprio Jaime ler em voz alta o seu manuscrito.
O paroxismo dos sentimentos contraditórios de Pedro leva-o a extremos de ódio pelos outros mas também a uma comiseração por si próprio que o faz chorar e o coloca em situações delicadas e humilhantes. A oscilação entre esse ódio pelos companheiros e a necessidade obsessiva de ser aceite por eles conduz Pedro a um extremo de emoções contraditórias que o levam a discursos intermináveis sobre sentimentos e relações humanas, dirigindo-se (no sentido intelectual, emocional e físico) de uns para os outros. Pedro Serra, no meio de um monólogo desconexo, dirige-se a Luís Afonso, um dos amigos, interpelando-o: “Basta de jogarmos às escondidas. Tu estás a mentir!” (225). A época em que o romance é escrito não é indiferente a esta temática da análise de um drama psicológico. Em 1934, as teorias de Freud eram ainda uma novidade, considerada perigosa, tendo os nazis queimado alguns dos seus livros em 1933. José Régio revela estar bastante atento a essa abordagem do papel do inconsciente e das emoções no comportamento do ser humano. Não faltam sequer na narrativa a ligação do protagonista à figura materna, que nele desencadeia sentimos ambíguos, nem o sonho de que matou o pai, numa presença inequívoca do complexo de Édipo, identificado por Freud, na sua teoria da psicanálise, nem as relações sexuais perversas. Toda a narrativa de Jogo da Cabra Cega é um longo texto em que os próprios diálogos entre diferentes personagens se inserem na teoria de Freud, segundo a qual fazer confidências sobre um problema pode ajudar a ultrapassá-lo. O caso de Pedro Serra chega no entanto a um ponto de histeria em que as conversas com os amigos apenas acentuam cada vez mais a sua personalidade desencontrada, egocêntrica, desejando ser um super-homem, mas nunca percebendo onde está a verdade ou o cinismo e a mentira. Todo o discurso surge também como uma corrente de consciência circular do protagonista, própria duma personagem enredada nos seus dilemas existenciais, que não se resolvem nem no final da narrativa, mantendo a personagem um comportamento autodestrutivo. Pedro Serra regressa à aldeia e a casa dos pais com a mãe, na esperança de descobrir se tem de “estoirar os miolos” ou se é capaz de continuar a viver. Nem no episódio final o melodrama, que poderia terminar num ambiente, ainda que temporariamente, pacificado e sóbrio, na sua despedida ao amigo a quem chamavam “Sombra”, deixa de se apresentar com um tom de caricatura: “E na sua atrapalhação, enquanto apertávamos a mão um do outro, o Sombra arrastou com a manga do casaco a chávena que tinha à borda da mesa. A chávena escacou-se no chão de mosaico” (435).
Referências
RÉGIO, José (1963). Jogo da Cabra Cega (2.ª edição). Lisboa: Portugália Editora.
[publicado a 27-09-2024]