Personagens que dão título à novela “Menina Olímpia e a sua criada Belarmina”, de Histórias de Mulheres (1946), de José Régio, estas duas mulheres dependem uma da outra na maneira como se conta a diegese, razão pela qual devem ser examinadas em conjunto. Enquanto a primeira é uma aristocrata decadente, psicologicamente presa num passado luxuoso em que era tratada com todos os mimos, a segunda, já bastante envelhecida, antiga criada da família, funciona como um cão de guarda que vigia os disparates de sua ama e tenta, por vezes, chamá-la ao entendimento. Por meio do discurso direto de Belarmina em conversa com uma das vizinhas do bairro miserável onde moram, ficamos a conhecer um pouco da vida pregressa de Olímpia, sua educação luxuosa e sem restrições, seu gosto em ser cortejada por muitos, bem como a situação traumática que a levou a permanecer numa suspensão temporal: a derrocada económica da família e a partida para África de seu pretendente.
Já idosas e doentes, patroa e criada vivem num cubículo de um bairro miserável no Porto, tendo como vizinhos “pobres criaturas que a miséria faz sarcásticas” (Régio, 1986: 130). As “duas estranhas figuras” (125) são vistas nas ruas centrais da cidade, Olímpia a deambular e Belarmina a segui-la por temer que a patroa faça algum disparate. Estes passeios incluem divagações por jardins públicos. As refeições mais fartas e um bom vinho são garantidos graças à mendicidade de Belarmina, cujo “casaquito preto já verde” (traço iterativo ao longo da diegese), “o seu ar humilhado e aflito”, “a sua visível falta de prática na mendicidade” (147) garantem esmolas que possibilitam refeições menos modestas e garrafas de vinho.
Dividida em seis capítulos, a novela abre-se com o tradicional passeio de Menina Olímpia pelo centro do Porto, entendido pelo narrador de nível extradiegético como “lentas digressões” (125), o que implica numa temporalidade contrária à rapidez dos transeuntes citadinos, o “redemoinho vivo” que “não respeita a serenidade de menina Olímpia”(126). Por se encontrar presa mentalmente a um passado aristocrático, “passeia-se” (125) tranquilamente para ser admirada, sem se dar conta das mudanças ocorridas na cidade e nela mesma, como se tivesse vinte e cinco anos de idade, quando está próxima a atingir a “casa dos sessenta” (129).
Causam estranheza em muita gente suas deambulações pela cidade e seus ares aristocráticos, sobretudo sua estranha toilette, composta pelos mesmos vestidos primaveris desbotados, rotos e amarrotados e uma maquilhagem carregada. Chamada pelos garotos de “raio de fantoche”, “espantalho”, “estafermo”, “camafeu” e “entrudo”, essa personagem parece estar vestida para uma festa de carnaval, ou ainda, preparada para fazer uma “exibição teatral” (127), por conta do seu mecanismo de ilusão que a faz desfilar pela cidade como se estivesse num “daqueles ambientes requintados em que, rara e bela flor ela própria, devera menina Olímpia viver toda a vida” (145).
Não há propriamente um conflito na história narrada. Olímpia e Belarmina parecem um par antonímico complementar. Ambas são solteiras e doentes (Olímpia com problemas de flatos, e Belarmina, com reumatismo). Ambas parecem irmanar-se na bebida, suportando, assim, os males de suas atuais condições sociais. O ponto de divergência entre elas ocorre quando a criada, com “suas poucas luzes” (135), tenta chamar a patroa ao entendimento. A recusa de enxergar a sua atual condição etária e social faz com que Olímpia se sinta “magoada num daqueles pontos melindrosos, profundos, complexos, como todos temos, e mais intimamente com os nossos sonhos e particularidades” (137).
Os efeitos cómicos acerca da maneira bizarra de Olímpia vestir-se e maquilhar-se recobrem uma tragicidade da sua condição de desagregação mental. Adormecida para a realidade, Olímpia acaba por permitir que o seu alter ego, ou o seu duplo, a menina Olímpia, invada a sua psique e divague pelas ruas centrais do Porto como se estivesse nos salões da sua mocidade. Como uma actriz que empresta o seu corpo a uma personagem, Olímpia acaba por deslocar o real e colocá-lo em outro lugar (Rosset, 1998: 13), ficando sempre presa a essa personagem; todavia, o descompasso entre a idade de Olímpia e suas vestimentas e maquilhagens denuncia sua patológica ilusão de julgar ser o que há muito tempo deixou de ser. Belarmina funciona como um contraponto, um lampejo de consciência de Olímpia, garantindo a presença do real no mundo ilusório criado pela patroa.
Referências
RÉGIO, José (1986). Histórias de mulheres. Lisboa: Brasília.
ROSSET, Clément (1998). O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Apres. e trad. José Thomaz Brum. Porto Alegre: L&PM.
[publicado a 26-09-2024]