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Daniel

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Autor: Edição Quetzal, 2010

Daniel (Vergílio Ferreira, Na tua face)

Daniel é narrador e protagonista do romance Na tua face (1993), de Vergílio Ferreira. Médico aposentado, caricaturista desde os tempos do liceu, narra a sua história de vida enquanto busca pintar um derradeiro quadro: “Pintei vários quadros antes deste último combate, chegarei um dia a vencer?” (Ferreira, 1993: 87). Seu olho clínico e sua sensibilidade estética amparam a reflexão sobre o modo como a arte representa a natureza humana e a proposição de uma filosofia da beleza, ou melhor, da fealdade (Cf. Ferreira, 1993: 20). São três as principais dinâmicas de figuração da personagem: a sua narração temporalmente dispersa e fragmentada, motivada antes por uma lógica temática; as suas relações conflitivas mas complementares com outras personagens; e a sua focalização expressionista, inclinada a uma deformação grotesca do real.

No primeiro capítulo do romance, Daniel conta que “há quarenta anos” encontrara Bárbara e, no último, diz reencontrá-la após “uns cinquenta anos de ausência”, o que nos permite deduzir que dez anos se passam enquanto narra sua história e que essa história se inicia muitos anos antes. Nesse amplo intervalo, a imagem que Daniel vai construindo de si depende dos saltos da sua memória a entrecruzar séries temporais e espaciais muito diversas. Pulverizados, interseccionados, os breves instantes que se lhe gravaram na memória aparecem envolvidos numa profusão de sensações e afetos, alinhavada por um pensamento ativo, em busca de “descobrir a beleza do lado de trás da fealdade” (194). Dessa costura, entendemos que tal motivação nasce ainda na experiência infanto-juvenil do protagonista, no gosto por animais medonhos e peçonhentos; na sua vocação precoce para a caricatura, para “pegar num rosto e devastá-lo de horror” (11); no reconhecimento ao espelho de sua própria fealdade: “olhos pequenos e piscos. Um nariz pingado. O queixo saído e os dentes, os dentes. Baralhados, quando visíveis. Jamais a vida partilhará contigo o sorriso” (20).

Duas são as mulheres com quem divide sua vida: Bárbara, a mulher dos sonhos juvenis não realizados, e Ângela, que chega para substituir a outra e, com o mesmo “rigor disciplinar” (173) com que estuda os clássicos gregos, vai se estabelecendo na vida de Daniel e decidindo o destino dos dois, solidificado na concepção dos filhos Lucrécio e Luzia. Enquanto Bárbara vem “rarefeita”, “do fundo das eras”, como “a essência da perfeição”, do “impossível”, “da Beleza” (77) e assim permanece na idealização de Daniel; Ângela é descrita na sua “face fria natural”, “terrivelmente normal” (12). Transformando a esposa em uma espécie de encarnação da “moral da natureza”, Daniel atenta para suas mudanças físicas – a gravidez, o envelhecimento, a progressiva cegueira, a materialidade do seu corpo morto – e chega a pintá-la com a “cara desfigurada” por uma dor de dente para denunciar na “harmonia do seu rosto o horrível que também estava lá” (187). Ainda um segundo par – os filhos Luc e Luz – servem-lhe para sublinhar simultaneamente as faces sombrias e iluminadas da existência, quer através da vida sorumbática do filho a se debater com a (im)possibilidade de Deus e a encontrar no suicídio um desenlace para tal conflito , quer através da vida livre e intensa de Luz que, com sua máquina fotográfica, revela, como o pai, as faces incongruentes do humano.

Assumindo, então, a função de romper com a “beleza raquítica e pindérica” (196), Daniel se interessa por figuras doentes ou disformes – como o Serpa Sapo, um deficiente físico que se torna amante de Luz e que vence uma corrida de paraplégicos – e surpreende, sob a aparência da normalidade, o grotesco: “Subitamente toda a massa de pessoas que se cruzavam nos passeios se me estampou à transparência numa chocalhada de esqueletos” (100). Na concepção do artista, “a história da pintura fora quase sempre a da complacência agradabilidade”, faltava “dar notícia da bestialidade das coisas” (187). Simbólica disso é a exposição, nas paredes de sua casa na praia, de uma reprodução da tela cubista de Picasso, Les Demoiselles d’Avignon, que recompomos a partir de sua descrição, em écfrase, do “feio espetacular” das figuras femininas.

Representar “a anomalia” significava, para Daniel, realizar “uma espécie de correção de uma natureza positiva, só positiva porque idealizada” (Seixo, 1994: 125). Motivação que parece mover também Vergílio Ferreira quando explica o tema do seu romance: “Digamos que ele é do ‘feio’ na arte, ou seja, na vida” (1994: 199-200). Dessa expressão do horrível transcende, porém, uma espécie de ternura pelo desamparo das figuras humanas em sua verdade e de aceitação da multiplicidade das formas da natureza. Indício dessa mensagem de redenção é o desfecho do romance, quando Daniel reencontra Bárbara, já envelhecida, acompanhada de um filho com Síndrome de Down. Ainda que mantenha um “impulso absurdo de recuperar a irrealidade perdida” da amada, Daniel assiste a seu desaparecimento em meio à neblina, enquanto dá as mãos ao filho choroso que ficara para trás, na sua “fealdade triste” (284).

 

Referências

FERREIRA, Vergílio (1994). Conta-Corrente - nova série III. Venda Nova: Bertrand.

____  (1993). Na tua face. Lisboa: Bertrand.

SEIXO, Maria Alzira (1994). “Vergílio Ferreira, os modernos, os pós-modernos e a questão das dominantes. A propósito de Na tua face”. Colóquio Letras, 134: 121-126.

 

[publicado a 11-09-2024]

Raquel Trentin