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Maria Eugénia

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Autor: Capa da edição de 1955
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Autor: Maria Eugénia por Acácia Thiele

Maria Eugénia (José Régio, O vestido cor de fogo)

Maria Eugénia é a coprotagonista de O vestido cor de fogo, publicado em 1946, no volume Histórias de Mulheres, e posteriormente dado à estampa autonomamente (1ª ed., 1955).

O título do conto deve-se a um vestido utilizado em uma ida ao Teatro Nacional, episódio-pretexto do desenlace: o divórcio. O vestido adquire propriedades encantatórias e sedutoras, sendo uma extensão de Maria Eugénia, também ela voluptuosa e ardente: “Tinha um vestido cor de fogo, sem enfeites, que, porém, lhe moldava todo o corpo franzino e sólido, como se ao mesmo tempo o cobrisse e desnudasse. (…) O decote descia-lhe ainda mais, as costas ficavam-lhe nuas quase até à cinta. Não sei bem o que se passou em mim: senti uma onda de sangue queimar-me todo o rosto” (Régio, 1978: 265).

A história é contada por um narrador autodiegético, jovem médico chegado a Lisboa. Este último, de quem pouco sabemos, conhece Maria Eugénia num baile de Carnaval. Curioso em conhecer aquela mulher, pede informações a um amigo que o avisa, “erguendo ameaçadoramente o dedo: – Cautela…” (229).

Malgrado o prenúncio, a que se juntarão outros, decide dançar com ela e é nesse momento que procede à descrição em jeito de retrato: “Maria Eugénia era pequenina (…) mas tão proporcionada, tão bem feita (…). Se nela havia alguma desproporção, essa redundava ainda num esquisito encanto. Sim, tinha o pescoço talvez demasiado alto; mas fino, flexível, branco – duma brancura ardente que o natural rosado da face ao mesmo tempo completava e salientava. Com uma pele de tal finura e cor, grande erro fora pintar-se. Efectivamente, só pintava os lábios. (…) Lembravam uma pequenina chaga em sangue. Os seus cabelos eram dum castanho batido de reflexos de oiro. Os olhos grandes, um bocadinho salientes, glaucos, cheios de luz” (230).

De um fôlego, apaixona-se e casa repentinamente, fruto do desejo selvagem de querer possuir aquela criatura. Ainda antes do matrimónio, temos acesso a outros indícios de um desfecho trágico: a educação deficitária e a leitura de novelas, que revelava um carácter “infantil” (233), e as palavras de Maria Eugénia: “olha que eu não sou nenhuma santa! Tenho os meus defeitos… até dizem que muitos” (234).

Depois do casamento, surgem mudanças e uma tomada de consciência por parte do narrador em relação à esposa. A personagem não era tão “frágil e franzina como parecia” (237); “comia bem, talvez demasiadamente bem para o que eu supunha ser a alimentação duma rapariga delicada” (238). Era, porém, a sua presença física que continuava a exercer sedução. Após o incidente da ida ao circo, em que Maria Eugénia observa ciosamente um ginasta do espetáculo, o narrador percebe que a mulher gostava de ser “fisicamente desejada” (239).

O voraz apetite sexual de Maria Eugénia começa a causar angústia e desalento ao narrador, que pretendia construir família, chegando a concluir que não tem uma esposa, mas uma amante. A personagem adquire, assim, contornos normalmente atribuídos ao sexo masculino, de voracidade e desejo carnal (242), levando o marido a tentar, por diversas vezes – debalde –, educá-la segundo os preceitos da sociedade conservadora da Lisboa dos anos 50, sob o Salazarismo.

E assim começa o afastamento, surgindo Maria Eugénia como “pueril” (264), “fútil” (265), levando o esposo à tentação do feminicídio (272).

É na noite em que Maria Eugénia usa o vestido cor de fogo que se dá o desenlace. Revoltado, o narrador esbofeteia a mulher por causa daquele vestido provocador. Apesar de em sociedade parecerem um casal feliz (262), a verdade é que o marido se sente como “um carroceiro ou um souteneur” (272). Não obstante tudo isso, nessa noite “o delírio ultrapassou o das (…) primeiras noites de amor” (270).

No dia seguinte, angustiado e desiludido com a situação, o narrador deixa Lisboa e divorcia-se de Maria Eugénia, que continua a levar uma vida devassa. Jamais temos a certeza de estarmos perante uma personagem adúltera, contudo, as suspeitas são muitas, pairando na narrativa o mistério e a suspeição.

O conto inverte os papéis sociais normalmente atribuídos ao macho dominante e à fêmea dominada, a partir de uma narrativa que, sem se submeter aos códigos realistas, retrata uma sociedade conservadora e fechada em protocolos serôdios.

Começando por ser adorada e objeto de desejo, Maria Eugénia transforma-se numa figura grotesca, ainda que sob o manto da voluptuosidade e da sedução carnal.

Esta personagem ganha corpo na atuação de Acácia Thiele no filme O vestido cor de fogo, produzido em 1985, por Lauro António.

 

Referências

Régio, José (1978). Histórias de Mulheres. 5º edição. Lisboa: Brasília Editora.

José Vieira