Camilo Castelo Branco é um dos protagonistas do romance Camilo Broca (2006), narrativa que conta a história da família do autor de Eusébio Macário desde finais do século XVI até ao seu suicídio em 1890.
Camilo toma conhecimento do apelido da família – os Brocas – numa carta que seu pai escrevera pouco antes de morrer: “Os nossos mais longínquos antepassados viveram numa inquietude que os empurrava de terra para terra, incapazes de assentar num sítio que lhes fosse favorável (…). Na província de Trás-os-Montes, julgo eu, donde somos oriundos, acertaram em nos pôr a alcunha de «os Brocas». Se consultar o menino um bom dicionário, encontrará como sinónimo deste vocábulo «verruma», e «alavanca», e «furador», e «patranha». Confiro à sua imaginação que desde já se me antolha riquíssima o encargo de decidir da justeza de tal antonomásia” (Cláudio, 2009: 46-47).
Fica evidente, desde logo, a capacidade imaginativa de Camilo, vaticinada pelo progenitor, a que se juntam outras características a que vamos tendo acesso, ora pelo narrador da primeira parte que é o próprio Camilo, ora pela irmã, Carolina Rita, também ela narradora das derradeiras páginas do romance.
A capacidade imaginativa e o poder criador estão associados à infância, a uma precetora de nome Dona Balbina, que seduzia Camilo e a irmã com frases fantásticas: “Arrume os sapatos que anda por aí um ratinho ansioso por ir esconder-se dentro de um deles” (29).
Órfão de pai desde muito cedo, Camilo será visto pela avó Rita Teresa, e posteriormente pela tia, Rita Emília, como uma criança sensível, em detrimento da irmã, Carolina Rita: “O Camilinho é mais sensível do que ela, só que esconde os sentimentos, e é o cabo dos trabalhos levá-lo a admitir a dor tremenda que, estou certa, deverá experimentar, mas nem uma lágrima, nem um soluço, que menino tão infeliz!” (40).
Passada sobretudo em Vila Real, a infância de Camilo será dividida entre a negligência, por um lado, e a liberdade que o obrigava, por outro, a ser autodisciplinado com a escola e com a educação. Apesar disso, os camaradas de carteira chamavam-lhe de “o Pasmado” (73), por aparentar estupidez ou falta de interesse nas matérias do saber.
Para além de sensível, observadora e imaginativa, a personagem revela-se maldosa e cruel, com uma frieza de morte: “aproximar-me-ia do tanque onde deslizavam os cinco patinhos que os primitos prezavam tanto (…). Eu afagá-los-ia, um a um, permitindo-lhes que singrassem um pouco ainda na excitada fruição do Mundo que os impelia a abanar o penachinho da cauda. Tomá-los-ia depois, um a um, nas mãos trémulas e, um a um, ir-lhes-ia torcendo o pescoço. Colocaria os inertes novelos, um a um, na superfície espelhada, e afastar-me-ia da área da minúscula hecatombe, atento ao cuá-cuá da pata-mãe. O vento dos fins de Outubro, soprado ao alto da serrania a sul, ir-me-ia secando os dedos de meticuloso matador” (74).
Durante a juventude e a primeira idade adulta, Camilo, folhetinista e novelista fervoroso, é reconhecido pela tia como um génio. Por esse motivo, ela convida-o a escrever a história dos seus antepassados, os Brocas, que acabam por legitimar não só o romance, mas a personalidade de Camilo Castelo Branco.
A terceira e última parte de Camilo Broca, narrada pela irmã do escritor, demonstra um homem manipulador e cruel, engendrando “perversos enredos” (298) que chegaram a prejudicar o casamento de Carolina Rita.
Apesar de cruel, a personagem não é despojada de génio e de talento, “servindo-se de eloquência capaz de endoidecer de inveja o próprio Homero” (313).
O romance Camilo Broca é, portanto, um exercício de sobrevida da personagem, neste caso de um dos maiores escritores da literatura portuguesa. Sobre o recurso à sobrevida e refiguração da personagem, é Mário Cláudio quem escreve as seguintes palavras que, em clave metaficcional, explicam a razão de um Camilo Castelo Branco (re)figurado: “Quem propõe uma personagem de romance, inventada a partir de quem tenha realmente existido, apenas logrará os seus intentos, se e quando a criatura que gerou principiar a distinguir-se do que lhe serviu de modelo. O termo deste percurso coincidirá portanto com o regresso da figura ficcional à humanidade da matriz donde foi extraída. O nosso Camilo, conforme à generalidade dos seus confrades, buscará desesperadamente o seu instante de absoluta identificação com o processo que estamos a descrever” (231).
Referências
Cláudio, Mário (2009). Camilo Broca. 3ª edição. Lisboa: D. Quixote.
[publicado a 15-05-2024]