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João/Mónica

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Autor: O Bando | atores Rui Silva e Ana Palminha como João e Mónica

João/Mónica (Vergílio Ferreira, Em nome da terra)

João e Mónica (Em nome da terra, 1990) formam um dos memoráveis casais da ficção de Vergílio Ferreira. João, juiz reformado, passa sua última fase de vida num lar de repouso, de onde narra a história como se estivesse a conversar com sua falecida esposa: “Amar-te ainda agora na memória difícil” (Ferreira, 1990: 13). Nessa espécie de carta a Mónica, ele entrelaça episódios dispersos do seu passado com episódios do seu presente – a rotina no lar, a relação com os filhos Márcia, Teodoro e André, a convivência com outros idosos – e alinhava tudo isso com um “bocado de filosofia” sobre a metamorfose da existência a partir da metamorfose do corpo: “Que é que existe por fim num corpo em farrapos” (74).

O leitor acompanha, então, o relacionamento do casal, desde a juventude, quando, no auge do vigor, se conhecem e apaixonam, até o envelhecimento, em que precisam enfrentar a decrepitude física, a impotência, a solidão. A jovem Mónica, de corpo “elástico”, “poderoso” (30), acrobata, professora de educação física, transforma-se num corpo “trôpego” (69), dependente do marido para guiá-la até à morte. O forte João, ágil jogador de futebol, “funcionário da lei”, precisa conviver com a dor do corpo mutilado, devido à amputação de uma perna, e com a sujeição às profissionais do lar para cumprir as tarefas mais simples do seu dia-a-dia: “Tão desprotegido, Mónica, tão desapossado do meu ser” (39). Essa ênfase na corrupção e na efemeridade da condição carnal dos protagonistas se alia ao olhar de horror e ternura perante outros corpos, “aleijados taralhoucos entrevados” (279), bem como à denúncia da marginalização e vulnerabilidade social dos velhos.

A aparência de Mónica ganha contornos pela caracterização direta de João: “O rosto redondo digamos oval (...) o tom mate. O cabelo negro liso, cortado curto à roda do pescoço. E uma franja (...) os teus olhos com uma energia irrequieta insofrida pronta a entrar em ação” (59). Sua altivez espiritual, no entanto, arrefece com a doença e o que resta de Mónica é o “olhar descentrado”, “alheio a tudo” (84), a reversão “a uma infantilidade passiva” (163).

A esse “apagamento” João interpõe seu impulso de sublimação, sagração da amada, notável pela maneira como irradia de graça e perfeição a imagem dela; como a compara à deusa Flora da estampa de um fresco de Pompeia que guarda consigo; e pela rememoração maravilhada de instantes de prazer com ela compartilhados (relações sexuais, passeios, banhos de rio, mar). Associado a isso, seu monólogo se constrói “como parte de um diálogo desejado” (Fonseca, 1990: 278), de um entendimento absoluto do “mistério irritante” (Ferreira, 1990: 159) do outro feminino, capaz de vencer o “intransmissível” (160) – segredos, tensões, palavras incognoscíveis que, entretanto, persistem na sua memória, como sinais da impossibilidade de uma comunicação total. Nesse movimento psicológico do narrador-protagonista, podemos surpreender uma tentativa de restaurar a comunhão erótica para superar a sensação de perda de si e garantir uma ilusão de continuidade.

Rivalizam com tal impulso, porém, os sentimentos de agonia, desamparo, descrença. A “impiedade cansada” (263) de João fica evidente no incômodo com a ortodoxia do filho Teo, padre, e na desmitificação do Cristo pendurado na parede do seu quarto, percebido como um seu igual em “humilhação”, “sofrimento”, “corpo apodrecido” (71). Certezas e convicções, vinculadas a contextos históricos e regimes políticos da época, vão ruindo também na medida em que evoca, e ao mesmo tempo questiona, tipos sociais, ideológicos (Firmino, Salus, Pereira Monocular, Penedo), como se o mais importante não estivesse no “lado defendido”, mas na “pessoa que se é” (248); ou ainda, como se essas certezas tivessem perdido sentido para o João que precisa travar, antes, uma luta com os limites do seu corpo.

Portanto, as “dinâmicas de figuração” (Reis & Grünhagen, 2021) das duas personagens, sustentadas pela “memória e a imaginação sensível” (Ferreira, 1990: 32) do narrador e uma profunda consciência da passagem do tempo, dão vulto e substância ficcional a uma problemática filosófica cara a Vergílio Ferreira, consagrada já em Invocação ao meu corpo (1969). Enquanto descoberta do mistério do corpo, em seu destino de ruína e dissolução, a travessia narrativa realizada por João (e pelo leitor que lhe dá a mão) leva-o, também, a aceitar, a amar o vil, o repulsivo, o ridículo e reconhecer a potência vital (o desejo, o amor, a memória, a imaginação, o pensar, o narrar) que resiste e talvez mesmo se reforce na aproximação à morte ou a presença da morte no movimento da vida.

João e Mónica ganharam sobrevida nas performances de Rui M. Silva e Ana Lúcia Palminha no espetáculo ao ar livre Em nome da terra (2015), encenado por Miguel Jesus, da equipe teatral O Bando.

 

Referências

FERREIRA, V. (1990). Em nome da terra. 2ª ed. Lisboa: Bertrand.

FONSECA, F. B. (1990). "Da subjectividade do corpo à subjectividade da linguagem". Revista da Faculdade de Letras. Universidade do Porto, Vol 7. p. 259-285.

REIS, C.; GRÜNHAGEN, S. (2021) “Introduction: the dynamics of the character”, in REIS, C.; GRÜNHAGEN, S. (eds.). Characters and figures: conceptual and critical approaches. Coimbra: Almedina.

Raquel Trentin