A morte é a protagonista de As intermitências da Morte (2005) de José Saramago. As figurações desta entidade ocorrem desde tempos ancestrais, tendo ela sido, ao longo do tempo, configurada de formas variadas. A ficcionalização da morte convoca “modelos mentais” e uma “dinâmica de inferências” (Reis, 2018:338), conferidos pelo processo de reflexividade literária, num contexto semiótico que permite ao ser humano encontrar o equilíbrio perante um assunto visto como nocivo, pavoroso e agónico.
Na narrativa saramaguiana, a morte é apresentada como uma figura alegórica e omnipresente, cujo perfil físico, psicológico e social é traçado através de uma caracterização mista. O ponto de partida da ação é a greve das funções usuais da morte, num país incógnito, ao oferecer “o maior sonho da humanidade desde o princípio dos tempos: o gozo feliz de uma vida eterna cá na terra” (Saramago, 2014:15), com abandono da reconhecida “dureza do coração” (156) e deixando os comuns mortais “sem o medo quotidiano da rangente tesoura da parca” (23), ao usufruir do “elixir da imortalidade” (84).
No entanto, perante o impacte nefasto e destrutivo da sua cessação de atividades, começa a reconhecer-se que a intervenção da morte era absolutamente necessária, chegando mesmo a desejar-se o seu regresso. O desespero avassalador e o sofrimento atroz, intolerável e destruidor de dignidade promovem ações exasperadas das famílias que reconhecem que “antes a morte que tal sorte” (37), pelo que procuram, passando a fronteira, um fim, uma espécie de eutanásia, na procura de uma peculiar ars moriendi, pois “a vida destes infelizes já não era vida” (46). Estes gestos humanitários, sem objetivos perversos, porque “não é o mesmo levar à morte e matar, pelo menos neste caso” (45), assumiram conotações ominosas, com contornos monstruosos, tornando-se alvos de julgamentos e condenações pela hipocrisia social, o que favoreceu a criação da “máphia” (54), uma organização secreta e não governamental que prestava serviços pouco lícitos relativos ao transporte de mortos-vivos.
Passados alguns meses, os resultados da experiência eram lastimáveis. O país encontrava-se convulso e as estruturas socioeconómicas e políticas eram abaladas por esta inédita situação, “o poder [estava] confuso”, “a autoridade diluída”, “os valores em acelerado processo de inversão” e sentia-se a “perda do respeito cívico” (76). Por esse motivo, a morte decide, com frontalidade, reassumir uma postura ativa e voltar a “embainhar a emblemática gadanha” (110), alterando apenas o modus operandi transato, dadas as críticas mordazes e acutilantes que lhe são dirigidas por “tirar a vida às pessoas à falsa-fé” (111).
Deste modo, para a gente ficar prevenida, a “fatalidade” (139) começa uma missão epistolar, com “a mão só composta de trocinhos ósseos”, que “não deixam impressões digitais” (113). Trata, então, de enviar missivas inapeláveis e indestrutíveis, cheias de erros, “de cor violeta” que “imitava a textura de linho” (97), com uma “caligrafia (…) estranhamente irregular”, “uma sintaxe caótica”, “ausência de pontos finais”, “não uso de parêntesis absolutamente obrigatórios”, “eliminação obsessiva de parágrafos” (123) e a “quase diabólica abolição da letra maiúscula”; até a assinatura surge propositadamente minusculizada, por ela própria se considerar uma “pequena morte quotidiana” (124), mas que mantém o “charme da tradição” (150). Assim se formula um singular discurso de personagem, concretizado como dispositivo de conformação acional (cf. Reis, 2018: 168; 398-401). Por outro lado, convém notar que “o estilo em si é um tema importante para os romances de Saramago, que serve à construção de algumas personagens dos anos 1990 e 2000”; neste caso, “há uma boa dose de humor e autoironia nessa e em outras reflexões sobre marcas estilísticas que, o leitor há de notar, podem ser associadas à prosa de Saramago” (Reis e Grünhagen, 2023: 146).
A “serial killer” (127) é figurada no romance como enigmática, circunspecta e misteriosa, com a sua “melancólica mortalha” (151), sendo vista como uma “imperatriz do mal” (139), imbuída de um espírito de impiedade, fereza e perfídia, cuja omnipotência assombra os atemorizados mortais. Mostra-se um ser sisudo, com um “esgar de sofrimento” (152), e sapientíssimo, cuja marca distintiva é a invisibilidade pública.
Quando ocorre o intrigante episódio de devolução da carta endereçada ao violoncelista (um homem solteiro, de quarenta e nove anos, que escapara da “figura sinistra”; 156), desencadeia-se a ação da “soberana pastora” (154). Afinal, o músico estava fadado a sucumbir aos 49 anos; todavia, protagonizando um “escândalo inaudito” (154), perfaz os 50, contrariando todas as previsões fatalistas, o que deixa a morte colérica e instável. O “esqueleto embrulhado num lençol”, que vive acompanhado pela sua fiel e inseparável gadanha, mostra-se maquiavelicamente engenhoso, ao idealizar um sistema inovador capaz de operar um aggiornamento automático dos dados existenciais e das fotografias alteradas instantaneamente, para que os verbetes ficassem atualizados. Decidida a encontrar uma forma de aniquilar o artista, a morte percebe, depois de uma avaliação criteriosa, que não há nada de incomum nesse homem.
Num momento marcante da construção narrativa, envolto pelo tom encantatório e sublime de uma sinfonia de Beethoven, a morte torna-se uma entidade antropomórfica, quando se metamorfoseia, surgindo mulher belíssima; embora tivesse um estilo um pouco démodé, envereda por um processo de sedução que a deixa nervosa e mais humanizada, em certos momentos. Assiste ao concerto do violoncelista, captando a atenção do músico, dada a sua beleza inefável. Depois de um primeiro encontro desconcertante, acaba por se deixar envolver pelo amor que a personificou.
Graças à sua dimensão filosófica e à sua carga emotiva, o romance As Intermitências da Morte foi objeto de uma significativa fortuna crítica e de várias transposições intermediáticas. Por exemplo, na série “Mulheres Saramaguianas” (Centro Português de Serigrafia), que esteve presente no Festival Internacional de Gravura e Arte sobre Papel de Bilbau (“A Morte”, por Manuel João Vieira; texto de Djaimilia Pereira de Almeida; 2022). Registe-se ainda: a obra musical dramática Death with Interruptions, pelo Left Coast Chamber Ensemble (música de Kurt Rohde e libretto de Thomas Laqueur); a adaptação para teatro pela Cooperativa Bonifrates de Coimbra, com dramaturgia de João Maria André (2023).
Referências
REIS, Carlos (2018). Dicionário de Estudos Narrativos. Coimbra: Almedina.
REIS, Carlos e Sara GRÜNHAGEN (2023). O essencial sobre José Saramago. Lisboa: Imprensa Nacional.
SARAMAGO, José (2014). As intermitências da Morte. 8.ª ed., Porto: Porto Editora.
[publicado a 15-01-2024]