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Benito Prada

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Autor: Edição Tinta da China, 2021

Benito Prada (Fernando Assis Pacheco, Trabalhos e Paixões de Benito Prada)

Nascido na Galiza, na aldeia de Casdemundo, sita na província de Ourense, Benito Prada Dorribo é o protagonista do romance Trabalhos e Paixões de Benito Prada (1993), a que no frontispício se acrescenta galego da província de Ourense que veio a Portugal ganhar a vida. Era o mais velho dos quatro filhos do casal constituído por Filemón Prada, que passava grandes temporadas no norte de Portugal exercendo o ofício de amolador (afiador no romance), até que numa das viagens adoeceu gravemente, perdendo para sempre o uso das pernas, e Nicolosa Dorribo, a única rapariga da família dos Padeiros de Casdemundo. O início do romance é extremamente violento, pois abre com a referência à morte de Manolo Cabra, namorado de Nicolasa, que os irmãos desta assassinam e assam no forno, quando descobrem que este desflorara a irmã. Esta, julgando-se traída e abandonada por Manolo, pois o crime nunca foi descoberto, aceita casar-se, sem paixão, com o amolador.

Confluem no livro de Assis Pacheco tradições literárias realistas de épocas distintas como a da picaresca espanhola do Século de Ouro e a do romance americano e europeu de meados do século XX, de estrutura argumental complexa e de mudanças bruscas do tempo narrativo, que é objeto de uma caprichosa manipulação pelo narrador, com avanços e retrocessos temporais que dificultam o apuramento da sucessividade factual. Para além disso, também não abundam no romance as referências a datas concretas, obrigando o leitor a construir a linha cronológica da ação a partir de acontecimentos históricos que funcionam como realia da narrativa. É desta forma que nos aparece a primeira referência cronológica indireta. Ficamos assim a saber que em 1899, “um ano contado sobre o desastre de Cuba” (17), já Benito Prada tinha nascido, porque Filemón se despede da mulher e dos filhos para se deslocar uma vez mais a Portugal.

Em 1908, ou seja, o “ano em que mataram o rei de Portugal” (59) já o próprio Benito Prada tinha residência em Portugal, onde alugara um quarto na zona de Aveiro (São Bernardo) a um compatriota, conhecido como o Grego, e vendia tecidos em feiras e mercados da região. Na sequência da morte do Grego, agravada pela incompatibilidade com o filho deste, Benito toma a resolução de instalar-se em Coimbra, em pleno consulado político de Sidónio Pais, onde começará por abrir uma pequena loja de tecidos nas escadas de São Tiago, até chegar a ser um dos mais prósperos comerciantes da cidade. A última referência a Benito e à sua família tem uma das raras datas concretas do romance, 1949, coincidindo com o ano do doutoramento honoris causa concedido ao ditador espanhol Francisco Franco pela Universidade de Coimbra. No romance, o generalíssimo é alvo de uma fracassada tentativa de atentado à saída da Mealhada, sem relação com a intriga principal.

Tendo em conta o vasto espetro temporal contemplado na narrativa, é óbvio que também há uma evolução do retrato físico do protagonista. Louro, de tez branca e dotado de uns expressivos olhos azuis, Benito manifesta desde tenra idade uma madurez que leva o padre Oyarbide, um basco de Eibar transplantado para terras galegas, a proclamar que o seu discípulo “tinha uma parte de homem grande e uma parte de anjo” (21). Ao atingir a idade adulta, tornar-se-ia num jovem alto e atraente, adquirindo um charme que nunca perderia por completo: “Foi louro até entrado na idade madura, sem chegar a enegrecer do cabelo, porque logo vieram uns frios prateados dar-lhes o recorte do homem severo” (81). Não admira, assim, que tivesse grande sucesso entre o sexo feminino. Descontada a sua atração juvenil, ainda em Casdemundo, por Maruxa Otero, não teve grande dificuldade em seduzir e abandonar Áurea e Célia, quando vivia na região de Aveiro, antes de encontrar refúgio e estabilidade emocional nos braços de Do Céu, amante do Grego sem exclusividade e casada com um pescador de bacalhau, que passava longas temporadas fora do país. Já em Coimbra, o narrador introduz três novas companheiras na vida do imigrante de Casdemundo: Veleda, com a qual não chega a casar, mas que lhe dá o seu primeiro filho, António (morre no parto), a prostituta Adelaide (Lada), que foi buscar ao Terreiro do Paço e instalou na sua casa (um dia foi visitar a família a Cinfães e já não voltou), e finalmente Rosa Maria, sensata e discreta, que lhe proporcionou a estabilidade de que necessitava para levar a cabo os seus negócios e afirmar-se como homem de família. Só a esta se ligaria por casamento, primeiro no registo civil e depois na igreja (após o nascimento da sua filha Carmen Rosa), para não desgostar os seus sogros.

Se faz sentido a referência à narrativa picaresca como antecedente do romance de Assis Pacheco, é evidente que lhe falta o principal ingrediente desta forma de narrativa do Século de Ouro: o pícaro. Trata-se de um tipo literário que é também um tipo social, normalmente um pequeno delinquente, que vive de crimes e embustes, de origem humilde e por vezes desonrosa (mourisca, cristã-nova) e que, numa sociedade rigorosamente estratificada, vê fracassados os seus propósitos de ascensão social. É claro que há nos Trabalhos e Paixões de Benito Prada personagens de perfil picaresco, como o Facorra, de Ramuín, que capitaneia o grupo de crianças com que Benito inicia as suas incursões a Portugal, mas não é o caso do protagonista do romance, que, como já vimos, partindo de um estado de extrema pobreza, acaba por conhecer uma notável ascensão social, vindo a ser um dos mais prósperos comerciantes de Coimbra, respeitado e adotado pelo círculo de ilustrados que se reunia na pastelaria Central, em plena Calçada, o espaço urbano que concentrava o “negócio fino” da cidade. O seu único ano de estudos regulares com a Meiga da Ventosela, associado aos hábitos de leitura que lhe inculcara o padre Oyarbide, acabam por ser suficientes para que a personagem consiga rapidamente encontrar soluções para fazer prosperar os seus negócios. É assim que, associando-se ao alfaiate Manuel Bordalo, consegue criar o primeiro pronto a vestir da cidade dos estudantes e levar a Ourensana do apertado cubículo com que inicia as suas atividades nas escadas de São Tiago para um dos principais edifícios da Calçada. Consegue também transferir a sua residência de um modesto quarto em Santa Clara, para um primeiro andar em Montarroio e mais tarde para uma moradia na Cumeada.

Outra caraterística que define Benito Prada e o afasta do perfil pícaro é o seu sentido moral e o seu conceito de honra, que o levam, por exemplo, a enfrentar a polícia política do regime salazarista (a PVDE, depois transformada em PIDE). Prada recusa-se a vender fardas da Legião Portuguesa, depois de tomar conhecimento de que os rebeldes nacionalistas tinham fuzilado o padre Oyarbide, no País Basco, durante a Guerra Civil espanhola, e acolhe em casa e ajuda a fugir, para se juntar à frente de Madrid, um republicano galego, Fontela, contabilista do seu cunhado falangista Amancio Borda, marido da sua única irmã, Xesusa.

Uma interessante particularidade do romance de Fernando Assis Pacheco consiste na utilização por parte do narrador de um registo linguístico que emula o da personagem principal. Consequentemente, o narrador tem um estatuto algo ambíguo porque, apesar de ser formalmente heterodiegético, adota um discurso claramente contaminado pelo do protagonista, que, por sua vez se inspira na biografia do avô galego do escritor, Santiago Dobarro Álvarez, que também chegou pobre a Coimbra e fundou nesta cidade uma empresa têxtil de grande dimensão, a Santix. Se Benito Prada falou durante muitos anos “três línguas numa só” (145), pois a sua débil escolarização não lhe permitia distinguir com rigor as fronteiras entre o galego e o castelhano, que trazia de Além-Minho, e o português adquirido no contacto com os novos vizinhos, também o narrador introduz no seu discurso, formalmente português, elementos lexicais provenientes dos outros dois idiomas e ainda do baralhete, a gíria dos amoladores de Ourense. Já na fase final do romance, o narrador acaba por reconhecer que Benito perdeu o sotaque, embora nunca tenha deixado de introduzir no seu discurso em português o galego ourensano e o baralhete (191).

                                                                                                                                                                                    

 

Referência

PACHECO, Fernando Assis (1993). Trabalhos e Paixões de Benito Prada. Porto: Edições Asa.

 

António Apolinário Lourenço