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Mário (Cântico final)

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Autor: Ruy de Carvalho como Mário

Mário (Cântico final) (Vergílio Ferreira, Cântico final)

Mário é o protagonista do romance Cântico final (escr. 1956/publ. 1960), de Vergílio Ferreira. Figurado por um narrador heterodiegético que adere à sua perspectiva na maior parte da narrativa, a personagem é representada em dois tempos principais, em capítulos geralmente alternados: os cerca de dez anos em que trabalhou em Lisboa até descobrir um cancro, e os últimos dois anos de sua vida, na aldeia, na “velha casa” dos pais, onde espera a própria morte.

A história principia por esse regresso de Mário – que nesta altura se aproxima dos cinquenta anos – às suas origens, e o despertar da sua memória oferece motes para o retorno do narrador no tempo da história, o qual flagra as relações do protagonista com artistas e amigos lisboetas, não sem antes apresentar, sumariamente, sua formação profissional e seus primeiros anos de trabalho até à morte dos pais. Lecionando para sobreviver e pintando para viver, é o falecimento dos pais que leva o professor e pintor a um novo ciclo de vida em Lisboa e à convivência com intelectuais, romancistas, pintores, músicos e com uma dançarina, Elsa, por quem se apaixona. Tais relacionamentos oportunizam a discussão dos principais temas do romance, que já se mostram caros à filosofia de Vergílio Ferreira: o sentido da arte, da morte, do amor na breve existência humana. Em suma, Mário representa o homem que, na situação-limite de um condenado à morte, busca entender o sentido da sua vida, especialmente naquilo que pode transcender sua finitude: a arte.

A figura de Mário vai sendo projetada aos poucos na narrativa, pela relação com outras personagens e pela forma como os acontecimentos repercutem na sua consciência e em suas emoções. As diferenças de Mário, sugeridas especialmente no confronto com algumas personagens masculinas, contribuem para o seu processo de individualização. Defensores ferrenhos de determinadas correntes estéticas e verdades morais, Matos, Rebelo, Armando, Mira-Adamastor, Félix, cujos nomes já indicam certa caricaturização, mostram-se imbuídos de certezas, “com todos os problemas já resolvidos na face” (Ferreira, s.d.: 31). Mário, francamente incomodado com tais presunções, recupera “certa gravidade do homem profundo” e assume uma posição de “interrogação alarmada” (40), que avança, sobretudo, na solidão e no silêncio, à procura de um valor para povoar a vida (43). Sua aprendizagem do essencial parece mais derivar do convívio com o feminino: com a delicadeza e a harmonia da pianista Paula, com a sensibilidade e a lucidez da romancista Guida. Particularmente, sua vontade e seu corpo são postos em crise pela jovem e livre bailarina Elsa, com quem divide alguns momentos efêmeros – “Mário tomou-a, apoderou-se dela, angustiado em cada fibra do seu corpo. Doíam-lhe as vísceras, os ossos” (61) –, mas tão intensamente eróticos que marcam sua memória até ao derradeiro instante de vida: “Elsa dançava de novo (...) exprimia e divinizava para sempre, o seu rasto de harmonia, da vivência ardorosa, da esperança” (226).

Ao refletir sobre a sua existência – estimulado também pelas conversas inspiradoras com o Dr. Beirão, responsável por seu tratamento na serra –, Mário progressivamente constrói um sentido para a morte: seja pelas repercussões em si de um contexto de guerra e fascismos (o enredo se passa, aproximadamente, entre os anos 40 e 50) e pela convivência com alguns incidentes fatais (como a morte do filho pequeno de Guida e Rebelo), seja pelo enfrentamento do cancro, que inclui a experiência de uma cirurgia. Consciente da gravidade do seu contexto histórico, Mário concebe a arte como “a grande defesa do homem, o grito indestrutível contra todos os terrores” (107). Essa noção, que até certo ponto evoca o papel social do artista, é vivida pelo pintor mais como um compromisso íntimo, capaz de dar significado à sua própria existência: “Eu pinto para estar vivo. Anexar alguma coisa mais ao instante da arte, do amor!” (153). Simbólica dessa concepção, é a reforma da velha capela da sua infância, onde Mário sacraliza, pela arte, a imagem de Elsa, como que restaurando um tempo original e assumindo, agnóstico que era, o gesto de uma divindade criadora. Assim, Mário vai serenando aos poucos e termina extasiado pela “beleza de um limite atingido” (218).

Conforme o último capítulo do romance, Mário perdura na memória dos amigos, nas telas a eles legadas e na descendência de um filho (cuja paternidade desconhecia até falecer). Fora do livro, o pintor ganhou nova vida pela interpretação do ator Ruy de Carvalho, na adaptação de Cântico final ao cinema (com título homônimo, 1975), por Manuel Guimarães (ver  entrevista).

 

 

Referência

FERREIRA, Vergílio (s.d.). Cântico final. Lisboa: Portugália.

Raquel Trentin