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Sebastião

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Autor: Mário Botas
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Autor: Mário Botas

Sebastião (Almeida Faria, O Conquistador)

Sebastião é o protagonista de O Conquistador, sexto romance de Almeida Faria, publicado em 1990. Construída em primeira pessoa, a narrativa apresenta, ao longo de sete partes, as peripécias amorosas da personagem, desde a primeira infância até aos vinte anos.

A existência de Sebastião está miticamente associada ao Rei D. Sebastião. Figura importante da história portuguesa, D. Sebastião (1554-1578), desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir. O rei tornou-se conhecido pela índole bélica e, depois de seu desaparecimento, passou a representar a esperança de uma possível salvação para Portugal, dando origem ao mito sebastianista, que continua servindo de influência para obras da literatura portuguesa contemporânea. A crença salvacionista no retorno do rei desenvolveu-se em autores como o Padre Antônio Vieira e Fernando Pessoa, entre outros. Almeida Faria revisita, assim, um dos mais significativos mitos do imaginário português. Também aproxima o protagonista do santo homônimo, formando, portanto, uma tríade “sebastianista”. Em temporalidades diversas, São Sebastião, D. Sebastião, o rei mítico, e Sebastião, o conquistador (das proezas eróticas), são nascidos no mesmo dia, 19 de janeiro.

Sebastião Correia de Castro, nascido sob a influência de signo aquático e com inegável inclinação venérea, possuía também similaridade física com o rei mítico (percebida através de um quadro do rei pintado por Cristóvão de Moraes): “A face imberbe; a testa alta, o cabelo alourado e curto como o meu; os olhos verde-tília; as arrendondadas sobrancelhas; os lábios tão impecavelmente desenhados” (Faria, 1993: 104). Assim como o Sebastião histórico, a personagem recebe uma alcunha, é o Rei da Roca, por dialogar imaginariamente com figuras imaginárias da nobreza. Já adulto, transforma o apelido em Rei do Rock, por gostar de dançar.

Com o nascimento precedido por uma tremenda tempestade sobre a serra de Sintra, Sebastião originara-se de um ovo e viera ao mundo com seis dedos no pé direito. O pai era o faroleiro João de Castro, casado com Joana Correia de Castro. Não podendo ter filhos, ficaram com o enjeitado nascido de uma casca. A família era ainda composta por João (o avô), que havia de falecer ainda na primeira infância de Sebastião, e Catarina, a avó, criadora da fábula do seu nascimento. Decisiva na vida do protagonista, a avó era quase uma “deusa tutelar”, pois compreendia o mundo através de sinais e mitos, “sempre pronta a desensarilhar as malhas pela noite tecida” (129). A construção narrativa de Almeida Faria, permeada de evidentes aproximações com a vida de D. Sebastião, também recorda-nos que o rei herdou o trono do avô, João III. Devido à pouca idade para assumir o trono, sua avó D. Catarina, tornou-se regente. Por sua vez, D. Joana, mãe de D. Sebastião, teve de regressar para Castela, depois da morte do príncipe D. João, a propósito do contrato nupcial estabelecido.

Ao longo do romance, a personagem criada por Almeida Faria desenvolve sua venérea influência, mantendo relações com as mais distintas mulheres, algo que começa ainda durante a sua infância. Além da capacidade de sedução, a qual evolui no decorrer dos anos, favorece-o o tamanho avantajado do órgão sexual, que causa espanto nos colegas de escola e lhe rende boas histórias de vantagens e conquistas. Num exercício à moda de Leporello (de enumerações das aventuras amorosas de seu mestre), é possível estabelecer uma linha temporal das relações sebastianas: ainda no berço, Sebastião é tocado por Dora Bela, uma liliputiana; segue-se Amélia, a colega de escola, que, por meio do toque, descobre as mutações do corpo masculino, rompendo a amizade inclinada ao amor; Justina, a professora dos encontros no bosque e que acaba por fugir para Lisboa; Clara, a americana, uma conquista longamente desenvolvida e aproveitada. Seguem-se então Julieta e Helena, importantes personagens na biografia de Sebastião.

O Conquistador pode ser entendido como um romance de formação, uma vez que aponta, desde o seu começo, para as fases do desenvolvimento físico e do caráter de Sebastião. Após descrever a infância, o livro trata das relações de Sebastião com as mulheres e com a avó, além do seu percurso escolar, seguido da partida para Sintra, Lisboa e Paris. Os estudos escolares não eram levados muito a sério, e não foram poucas as investidas para afastar-se das aulas à custa de atestados falsos que não tardaram a assumir ares de verdade: nas suas viagens de Sintra para casa, uma doença misteriosa e avassaladora viria a acometer o adolescente Sebastião.

Se, por um lado, a personagem criada por Almeida Faria concentra paridades inegáveis com o rei desaparecido na África, por outro lado, os dois são totalmente díspares entre si. Ao chegar à idade de servir à pátria, Sebastião mostra-se avesso à beligerante ação portuguesa contra as colônias e, com um manejo estratégico, bate em retirada para a França. Estende sua temporada ali até 1974 quando, finalmente, com a Revolução dos Cravos, o fim da ditadura e o processo de redemocratização, também se iniciam as independências dos territórios africanos colonizados. A tendência para a sedução dá-se, segundo as palavras do próprio protagonista, por ele ter aceitado a premissa do cavaleiro Alcides, ajudante no arranjo de encontros, de que seria a reencarnação “há seculos aguardada” de Sebastião, o Desejado. Devia, portanto, dedicar-se vivamente ao que o outro afastava: a proximidade erótica e o deleite com o sexo feminino.

O período em Paris, além de aumentar a lista de mulheres seduzidas, pelo trabalho conseguido por Helena e o marido, na SUCH, Société pour l´Usage Convenable des Hommes, faz com que Sebastião entregue-se à desforra de diversos tipos de conquistas. Matricula-se na Sorbonne, no curso de História, pois estava “cada vez mais interessado num passado que desejava desvendar” (115).

O retorno de Paris e o fim do exílio voluntário levam Sebastião para Azoia. O nevoeiro, parte indissociável do imaginário sebastianista, invade a manhã sobre o mar, envolvendo-o nos pensamentos e rememorações do vivido até então. Superada a idade em que o seu duplo histórico morrera, o herói, conquistador, ressurge das brumas e vislumbra, no próprio sonho, essa dualidade com o rei morto. Existem elementos místicos e simbologias nas imagens do sonho e entre elementos da astrologia, dos evangelhos, da mitologia e, por meio deles, Sebastião sente-se protegido de morrer cedo.

 

Referências

FARIA, Almeida (1993). O conquistador. Rio de Janeiro: Rocco.

 

[publicado a 07-07-2023]

Gabriela Silva