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Jaime Faria

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Autor: Edição Verbo, 1972

Jaime Faria (Vergílio Ferreira, Alegria breve)

Jaime Faria é o protagonista de Alegria breve (1963), de Vergílio Ferreira. Envelhecido, o último habitante de uma aldeia na serra define-se à medida que narra a sua história, numa entonação, predominantemente, meditativa e dubitativa: “Escreverei para esquecer? Como quem confessa uma culpa? Para lembrar ainda, para ser tudo ainda fora do tempo e da morte?” (Ferreira, 1963: 53). Na linha heideggeriana de que o autor é tributário, Jaime se constrói no tempo, através das relações, oscilantes e indeterminadas, que estabelece com o passado e o futuro a partir do seu instante presente, e dimensiona a condição contraditória de “ser para a morte”: “Um corpo que apodrece, mas a luz de dentro tão viva, tão igual” (130).

A história do protagonista acompanha a transformação drástica e devastadora da aldeia, causada pela indústria extrativa de volfrâmio para fomentação da empresa bélica. Finda a Grande Guerra, a decadência se expande com a intensa emigração dos jovens, o abandono das casas e da igreja, o esvaziamento da escola onde Jaime era professor, o desaparecimento de cada existência até à completa desolação do lugar. Jaime assume, então, a única ocupação que lhe resta, enterrar os últimos mortos, inclusive sua mulher Águeda, com cujo sepultamento abre e fecha a narração, desse modo autodesignando-se como “testemunha final de uma história complexíssima, trivial e estúpida” (70).

A relação de Jaime com esse evento revela-se controversa: ao mesmo tempo em que não rejeita, de modo franco, a aposta progressista do engenheiro Luís Barreto quando este pede seu apoio, reivindica, a certa altura, a construção de um estatuto que impedisse mais prejuízos ambientais e sociais à aldeia, como resposta à urgência íntima de se “reconhecer humano numa ação útil e humanitária” (96). A exuberância que a imagética da ruína toma aos olhos de Jaime, por fim, se vinculada a uma realidade histórica mais ampla, projeta-o como um símbolo do homem moderno, com sua vulnerabilidade e responsabilidade, diante da catástrofe que a trajetória do progresso humano, afinal, revelou ser. Paradoxalmente, persiste em Jaime uma urgência de vida e a evocação de um tempo de reinício, como suas últimas palavras reiteram: “Virá um dia [o meu filho]. Voltará a Primavera (...). Amanhã é um dia novo” (332).

A figuração de Jaime repercute a noção vergiliana de que a concepção de um eu inexoravelmente é a concepção de um tu (2008). Além do seu confronto com os “filhos do aço”, como Aristides e Barreto, representativos de uma visão materialista e tecnicista desprezada por Jaime, ganham ênfase na constelação de personagens da narrativa as que mais mobilizam o seu processo de formação. Vanda, a mulher de Luís Barreto, “escura”, de “olhos diabólicos” (113), com seu corpo “húmido e quente” (120), desperta em Jaime “a ira do sangue” (74) e o conhecimento da potência de sua carnalidade: “toda a violência da terra, mastigação vulcânica, laboriosa, apontada a ti” (74). “Animal da terra”, Vanda entrega-se ao impulso erótico e é com ela que Jaime gerará um filho, mesmo que Vanda rechace tal paternidade. Por oposto desta, a branca, loura e diáfana Ema, ao reconhecer a espiritualidade que trespassa o universo e conceber as religiões como mais uma via de acesso ao sagrado, oferece uma resposta metafísica às interrogações existenciais de Jaime. Águeda, por sua vez, interpõe à satisfação dos desejos do protagonista seus costumes católicos conservadores, a submissão ao pai, a repressão do prazer e o temor do pecado. Entre essas representações, movem-se ainda Padre Marques, com o qual Jaime regularmente disputa um jogo de xadrez, simbólico da luta do homem com Deus, e seu par opositivo, Amadeu, que defende a valorização do erotismo como gesto libertador do ser: “Agora temos de nos bastar a nós próprios (...) o homem começa e acaba no seu corpo” (179) – motivação principal do destino de Jaime na narrativa: “Amadeu justificava-me” (193), “redimia-me” (196).

Na dinâmica da construção de Jaime, é fundamental ainda uma simbólica espacial que tira proveitos de uma série de imagens: neve, frio, silêncio, montanha, fogo, etc. Associada a outros aspectos aqui mencionados, essa figuração transforma um “herói irrisório” no “mito do último homem que é também o primeiro homem” (Bréchon, s.d.: 17). Neste limiar, o narrador-protagonista, gradativamente, recusa formas de transcendentalização, até mesmo a mística da arte (sinal disso é a destruição dos discos ganhados de Ema), para refluir à “simples verdade de ser” (332) no corpo (numa antecipação da filosofia esboçada pelo autor em Invocação ao meu corpo?, 1969) e para retornar “à simplicidade de existir”, na busca de “saber onde o lugar do homem puro, feito de humanidade, reintegrado em sangue humano, em carne humana, de miséria e triunfal” (330).

 

Referências

BRÉCHON, Robert (s.d). "Prefácio da tradução francesa", in Vergílio Ferreira, Alegria breve. Lisboa: Portugália.

FERREIRA, Vergílio ([1963] s.d). Alegria breve. 2ª ed. Lisboa: Portugália.

–––––  ([1969] 2011). Invocação ao meu corpo. Lisboa: Quetzal.

Raquel Trentin