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Milene

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Autor: Capa da 7.ª edição Dom Quixote (2019)

Milene (Lídia Jorge, O vento assobiando nas gruas)

Milene Leandro é a personagem central de O vento assobiando nas gruas (2002), de Lídia Jorge, romance que põe em relevo os modos de constituição das identidades e suas diferenças e as contradições sociais de um mundo que se encontra em pleno processo de globalização. Nesse contexto de transformações da segunda metade da década de noventa, vive Milene, uma mulher de quase 30 anos, que sofre “o silêncio obstinado das coisas caladas” (Jorge, 2007: 13). Consciente das dificuldades que enfrenta com a linguagem, Milene é movida pela ânsia de expressar-se, compondo uma trajetória que vai de encontro às forças que têm a “intenção de diminuírem a sua vida, de esmagarem o seu enigma (...) de a empurrar para o domínio da insignificância e da obscuridade” (36).

Centrada na história de vida de Milene, dividida em três partes, “Cerimónia”, “O livro de Milene” e “O vento assobiando nas gruas”, a narrativa fragmenta-se em múltiplas vozes, cujas perspectivas, entre supostas verdades e mentiras, assinalam a ausência de voz da protagonista. Da perspectiva do narrador onisciente da primeira parte, testemunha-se a ansiedade, as inseguranças e o medo da protagonista. Confrontada com a inexplicável morte da avó, com quem morava, Milene necessita com urgência, além de desvendar os fatos, sobretudo “encontrar por seus próprios meios, as palavras necessárias para explicar o que se havia passado com a avó Regina.” (12).

A pluralidade de memórias e testemunhos que se apresentam nos capítulos subsequentes, articuladas em analepse, além de constituir o desmonte de uma visão única sobre os mecanismos sociais e suas formas de tratamento às diferenças individuais, expondo a tensão entre a consciência de Milene sobre suas dificuldades e os fatos tecidos ardilosamente pela sua família, confrontam os códigos que regem a sociedade portuguesa e seus processos identitários, trazendo à luz a “etnicidade e razão de ser [da] nacionalidade” (Tutikian, 1999: 14).

O processo interdiscursivo que compõe a figura de Milene é costurado pelos deslocamentos projetados pela narrativa. Situada na aldeia de Valmares, espaço fictício que Lídia Jorge considera “uma terra do Sul”, lugar de cultura milenar que está sendo progressivamente substituída por outra de lazer (Jorge: 2003), a velha “Fábrica de conservas Leandro 1908”, em cuja inscrição “se decifrava servas e 908” (Jorge, 2007: 11, grifo da autora), é o espaço centralizador que põe em relação presente e passado de duas famílias. Fundada pelo bisavô de Milene no início do século XX, a fábrica passa às mãos do pai da protagonista e, após a Revolução dos Cravos, encontra-se falida.

Com a morte dos pais de Milene, a fábrica é arrendada a uma família de imigrantes caboverdianos em ascensão social, para os quais, agora, “se oferecia dia e noite a corrente eléctrica que florescia em luz, movimento, aquecimento, ventilação, refrigeração, som e imagens” (46). O espaço torna-se o emblemático lugar “do mais moderno e do mais condensado”, simbolizando, paradoxalmente, a reunião de valores antigos, tanto os da família burguesa tradicional como os representativos da ancestralidade africana, com as “maravilhosas máquinas provenientes de toda a parte” (47).

Milene, personagem que desencadeia a desordem no mundo burguês, realiza a conexão entre dois universos culturais: de um lado, europeia, burguesa, branca, a etnocêntrica família Leandro; de outro, de tradição oral, africana, imigrante, a família dos Mata. A relação da protagonista com Antonino Mata acirra e pontua as diferenças entre esses dois mundos, desvelando as fragilidades e as consequências das relações de poder estabelecidas tanto pela perpetuação dos valores tradicionais da sociedade portuguesa como pela adesão desenfreada aos valores selvagens da modernidade.

Na última parte da narrativa, que apresenta o título que dá nome ao romance, realiza-se o que anuncia o título da primeira parte: a cerimônia de casamento de Milene e Antonino Mata. Aprofunda-se o jogo ficcional com a inscrição acrescentada: post scriptum. A narrativa, agora do ponto de vista da prima da protagonista, que “nessa altura, ainda não sabia de nada” (455), explicita, intercaladas às lembranças da infância, o diagnóstico de deficiência mental de Milene e as violentas experiências a que foi submetida pela família Leandro.

A figura de Milene, portanto, projetada pelo discurso testemunhal e pela voluntária organização da memória, ao problematizar as verdades impostas tanto pelos valores arcaicos burgueses da sociedade portuguesa quanto pelo projeto futurista implantado pelo mundo globalizado, faz ecoar a repercussão dos silenciamentos, da exclusão e do racismo. Por outro lado, Milene simboliza a esperança e a resistência. Ao final de sua história, do contato entre as diferentes estruturas culturais, processo que culmina com a queda da Fábrica de conservas Leandro, “restavam as onze palmeiras, que não tinham sofrido nada, as cabeleiras verdes ao vento” (466). Atrelados à imagem da protagonista, os deslocamentos e o movimentado cenário da natureza, de que se tem expressão já no título do romance, metaforizam, simultaneamente, as possibilidades de transformação do homem e suas capacidades de resistência, ou, com referência às perspectivas nacionais, alternativas para “reajustar Portugal a si mesmo, descobrindo aquele ponto em volta do qual o sentimento de uma identidade melhor se polarize” (Lourenço, 2016: 152).

 

Referências

JORGE, Lídia (2003). "Sopra de Valmares a força de uma terra imaginada". Entrevista de Andréia Azevedo Soares. Público/Ípsilon, 21 de maio, disponível em: https://www.publico.pt/2003/05/21/jornal/sopra-de-valmares-a-forca-de-uma-terra-imaginada-201471

____  (2007). O vento assobiando nas gruas. Rio de Janeiro: Record.

LOURENÇO, Eduardo (2016). O labirinto da saudade. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil.

TUTIKIAN, Jane (1999). Inquietos olhares: a construção do processo de identidade nacional nas obras de Lídia Jorge e Orlanda Amarílis. São Paulo: Arte & Ciência.

 

Ilse Vivian