O português Alberto protagoniza o romance A Selva (1930), assinado por Ferreira de Castro. Monarquista convicto, Alberto participou da Revolta de Monsanto (1919) e, derrotado, foi obrigado a fugir para o Brasil aos 26 anos, vivendo em Belém do Pará com o seu tio Macedo.
Cansado dos gastos com o sobrinho, Macedo envia Alberto ao seringal de Juca Tristão, um fazendeiro de Manaus cuja produção de borracha, apesar da crise, ainda pulsava no coração da selva amazônica – daí o título da obra. A notícia serve de pano de fundo para o narrador apresentar Alberto em sua precariedade de “jovem alto e magro, cabelo negro e olhos amortecidos, denunciando vida indolente. A calça dançava-lhe na cintura e os ossos adquiriam forte relevo no tronco seco e nu” (Castro, 2019: 29).
Alberto, que abandonara a Faculdade de Direito em Portugal, resolve aceitar a proposta de trabalho no seringal, não sem alguma resistência e orgulho. Depois da viagem, ele chega à terra de Juca Tristão, ironicamente chamada de Paraíso e onde, na verdade, o protagonista prova um segundo exílio, um inferno muito verde, quente, misterioso e selvagem. Sob os ensinamentos de Firmino, Alberto começa a extrair borracha e vai muito mal na atividade, o que leva Juca Tristão a promover o protagonista a ajudante de escritório. Ali, Alberto conhece Dona Yayá, a mulher de Juca Tristão, cuja figura desperta a esquecida líbido do protagonista.
A vida no seringal colocou Alberto contra a sua própria civilidade: a exploração econômica e o trabalho escravo impostos por Juca, a relação sexual entre um homem e uma égua (112) ou o humilhante tratamento dado ao ex-escravo Tiago (178) foram apenas algumas das imagens que abalaram a percepção que o protagonista tinha de sua própria humanidade. Tal foi o impacto sofrido por Alberto que a narrativa começa a descrever também a animalidade que nele começa a surgir: ele chega a sentir atração sexual por uma criança e, depois, lança-se com intenções sexuais para Nhá Vitória (211), uma idosa que lavava as roupas dos trabalhadores.
O espectro naturalista que dicotomiza o ser humano entre a animalidade e a razão também atravessa Alberto, quando ele, determinado a ficar com Dona Yayá, cogita matar Juca Tristão (194). Contudo, a carta de sua mãe traz uma notícia que dissolve todo esse projeto erótico: a anistia para os revoltosos de Monsanto. Alberto, na resposta, pede que a mãe busque um empréstimo para que ele consiga retornar à terra natal, proposta que ela aceita de bom grado.
A seguir, o protagonista comunica a saída a Juca Tristão, que, por surpresa, aceita a decisão de Alberto e perdoa-lhe a dívida. Entretanto, ainda antes de descobrir-se anistiado, a personagem havia colaborado na fuga de Firmino e outros seringueiros. Semanas antes de sua partida, os fugitivos são capturados e Juca exerce sobre eles uma tortura impiedosa, que gerará em Alberto um desejo de vingança e, ao mesmo tempo, um medo de que Firmino confesse a ajuda dada pelo protagonista. Contudo, a vingança desejada por Alberto vem de Tiago: vendo a tortura imposta aos fugitivos, o ex-escravo resolve atear fogo numa parte da casa e matar o fazendeiro. O cabo do romance é dado com a perplexidade de Alberto depois do incêndio, imaginando-se advogado a julgar o assassinato.
A subjetividade de Alberto evoca um pensamento político decadente – a monarquia – e que há muito perdera lugar para os ideais republicanos. Oscilando entre os estados de natureza e de cultura, Alberto vence o paradigma positivista e não deixa que as circunstâncias lhe imponham um modo de ser, mas, ao contrário, questiona o sistema que o cerca, o que dá à personagem um toque neo-realista (cf. Coelho, 2007).
É de notar ainda o teor autobiográfico da obra, uma vez que o próprio Ferreira de Castro viveu em Belém do Pará, passou quatro anos justamente em Paraíso, onde também trabalhou como seringueiro, seguindo exatamente o percurso do protagonista de A Selva, obra que rendeu ao autor uma indicação ao Nobel de Literatura.
Quanto à fortuna da obra, destaca-se o programa A escola e a selva (evocação de Ferreira de Castro), produzido pela RTP, bem como o filme homônimo, A Selva, realizado pelo cineasta português Leonel Vieira em 2002.
Referências
CASTRO, Ferreira de (2019). A Selva. 45.ª ed., Lisboa: Cavalo de Ferro.
COELHO, Maria Adelaide Antunes de Brito (2007). Do romance de Ferreira de Castro ao filme de Leonel Vieira. Dissertação de Mestrado. Universidade Aberta: Lisboa.
[publicado a 06-04-2021]