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Conselheiro Acácio

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Autor: António
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Autor: Bernardo Marques
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Autor: Fernandes da Silva
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Autor: Lima Belém
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Autor: Leonel Cardoso

Conselheiro Acácio (Eça de Queirós, O primo Basílio)

Personagem do romance O primo Basílio (1878), o conselheiro Acácio (muitas vezes designado apenas como “o conselheiro”) é uma das figuras mais conhecidas e marcantes da produção literária de Eça e uma daquelas que ganharam um lugar de transcendente significado no nosso imaginário cultural.

A presença da personagem no cenário social e familiar do relato torna-se evidente em função da sua extensa caracterização física e mental, talvez a mais pormenorizada de toda a ficção queirosiana, em particular aquela que associamos aos protocolos representacionais do realismo. Nesse sentido, a figuração do conselheiro obedece à lógica descritiva do retrato literário, o que justifica um passo como este: “Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que de uma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca – e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca” (Queirós, 1990: 41). A isto seguem-se a palidez do rosto, as lunetas escuras, a covinha do queixo, “e as orelhas grandes muito despegadas do crânio” (41). Por fim, comparecem na figuração outros elementos que fazem de Acácio um impressivo tipo social e mental: “Sempre que dizia – El Rei! Erguia-se um pouco na cadeira”, “nunca usava palavras triviais”, “dizia sempre «o nosso Garrett, o nosso Herculano»” (41). O que, tudo por junto, culmina no discurso da cortesia exibido pelo conselheiro e nos efeitos irónicos que dele se deduzem (cf. Vilela, 2013).

No tocante à sua intervenção na ação, o conselheiro Acácio é uma personagem com relevância reduzida, se excetuarmos alguns episódios significativos que envolvem o adultério de Luísa e, depois disso, a sua morte. Um desses episódios encontra-se no capítulo II do romance, quando se discute o final do drama Honra e Paixão, de Ernestinho Ledesma. No desenlace previsto, o marido mata a adúltera, opção que Jorge aplaude; pelo contrário, o empresário prefere o perdão, tal como o conselheiro, que “aconselhava a Ernestinho a clemência”, porque, declara, “o espectador sai mais aliviado!” (47). No final do romance, intervindo de novo nesta mise en abyme que faz interagir a ficção dramática com a intriga do romance, o conselheiro insiste no perdão e dirige-se a Jorge, entretanto conhecedor já do adultério de Luísa: “ – O nosso Jorge – disse com solenidade o Conselheiro – não podia conservar ideias tão extremas. E decerto a reflexão, a experiência da vida…” (403).

Pela sua condição de tipo e pelo seu potencial de representação temática (cf. Phelan, 1989: 2-3) de personagem que não evolui ao longo da ação, o conselheiro Acácio ilustra o “formalismo oficial”, assim designado numa conhecida carta de Eça a Teófilo Braga, de 12 de março de 1878. Trata-se, afinal, daquela mentalidade “conselheiral” a que o escritor várias vezes se referiu, sobretudo em textos doutrinários e de polémica; a isso junta-se a hipocrisia moral de quem, defendendo as instituições e os bons costumes, vivia “amancebado com a criada” (Queirós, 1990: 41) e escondia na gaveta da mesa de cabeceira um “volume brochado das poesias obscenas de Bocage!” (314). Não por acaso, é Acácio quem redige o necrológico de Luísa, num estilo em que se projetam os atributos que aqui têm sido mencionados: começando por citar o “imortal Garrett”, a prosa do conselheiro continua assim: “‘…Mais um anjo que subiu ao Céu! Mais uma flor pendida na tenra haste que o vendaval da morte, em sua inclemente fúria, arremessou mal desabrochada para as trevas do túmulo…’” (420).

Tudo isso ajudou a gerar a sobrevida de uma figura que pode também ser relacionada com outras personagens queirosianas (por exemplo, Sousa Neto, d’Os Maias) e ainda, mais distanciadamente, com o flaubertiano Homais. A personalidade, os gestos e a mentalidade de Acácio deram lugar ao adjetivo acaciano, uma singular afirmação da sobrevida da personagem no plano idiomático, sobrevida essa que começa, em movimento transficcional, no contexto da própria ficção queirosiana. N’A Correspondência de Fradique Mendes, ao fazer um resumo daquilo que na vida existe de contraditório, Fradique diz: “Em resumo adoro a Vida — de que são igualmente expressões uma rosa e uma chaga, uma constelação e (com horror o confesso) o conselheiro Acácio” (Queirós, 2014: 152); depois, na carta sobre Pacheco, pode ler-se o seguinte, a respeito da morte daquela espécie de parente próximo do conselheiro: “Jaz no Alto de S. João, sob um mausoléu, onde por sugestão do senhor conselheiro Acácio (em carta ao Diário de Notícias) foi esculpida uma figura de Portugal chorando o Génio” (Queirós, 2014: 250-251).

Num outro plano, o conselho Acácio deu origem a uma vastíssima galeria de refigurações, no cinema, na televisão, no teatro, nas artes plásticas, etc. Em filmes e em séries de TV, em realizações de Georges Pallu, de António Lopes Ribeiro ou de Daniel Filho (cf. Reis, 2019: 253), o casting foi favorecido pela mesma “nitidez de traços que faz de Acácio a personagem mais consensual, em termos iconográficos, de toda a galeria queirosiana: são incontáveis os artistas plásticos, com maior ou menor projeção, que fixaram, em diversas épocas, suportes e enquadramentos, a figura de Acácio. Alguns deles: Saavedra Machado, Alberto de Sousa, Lima Belém, Arnaldo Ressano, Fernandes da Silva, Leonel Cardoso, João Valério, Bernardo Marques, Rocha Vieira, Santana e António” (Reis, 2019: 252-253).

Confirmação plena da sobrevida da personagem: a sua entrada no espaço público, referida em textos de imprensa, quase sempre com propósito crítico, pela via de comparações desprestigiantes. Noutros termos: ser comparado com o conselheiro Acácio, na vida cultural, social ou política, não é, decididamente, um elogio que se deseje (veja-se https://oglobo.globo.com/opiniao/conselheiro-acacio-18037556 e https://expresso.pt/economia/2019-11-24-Resposta-ao-Conselheiro-Acacio-Louca ; acessos a 23.2.2021).

 

Referências

PHELAN, James (1989). Reading people, reading plots. Character, progression, and the interpretation of narrative. Chicago and London: The Univ. of Chicago Press.

QUEIRÓS, Eça de (1990). O primo Bazílio. Episódio doméstico. Organização, introdução e notas de Luiz Fagundes Duarte. Lisboa: Pub. Dom Quixote.

QUEIRÓS, Eça de (2014). A correspondência de Fradique Mendes. Memórias e notas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

REIS, Carlos (2019). “Figurações queirosianas: a personagem n’A correspondência de Fradique Mendes”, in Giuliano L. I. Santos et alii (orgs.), Novas leituras queirosianas: O primo Basílio e outras produções. Porto Alegre, RS: Editora Fi. 251-271 (Disponível em: https://queirosiana.files.wordpress.com/2021/01/figuracoes- queirosia-nas-a-personagem-na-correspondencia-de-fradique-mendes.pdf; acesso a 23.02.2021.).

VILELA, Ana Luísa (2013). “Cortesias acacianas: ironia e boas maneiras”. Navegações. 6 (1): 67-76.

Carlos Reis