Esta personagem é o médico octogenário da aldeia retratada no romance As Pupilas do Senhor Reitor (1867), de Júlio Dinis, que foi primeiramente publicado em formato folhetinesco, no Jornal do Porto, a 12 de maio de 1866, e editado no ano seguinte em livro. João Semana tem relevância enquanto figura ilustrativa da classe médica da sua época, mas também enquanto instrumento de representação dos conflitos ideológicos e geracionais que o chamado período da Regeneração desencadeou.
João Semana surge nesta Crónica da Aldeia, assim designada pelo próprio autor no subtítulo, pelas vozes de outras personagens que com ele convivem e que atestam o seu caráter irrepreensível e até reverenciado. O narrador omnisciente apresenta-o desta forma deliberadamente, com o intuito de certificar o leitor da unanimidade afetiva que esta personagem convoca e, ao mesmo tempo, como estratégia de demonstração do respeito que a comunidade devolve a um benfeitor em final de carreira.
Esta expetativa inicial é confirmada na sua primeira aparição cénica: a receção ao novo médico Daniel, um dos protagonistas. Nessa ocasião, ele é apresentado como um "homem rude, franco, jovial" (DINIS, 2017: 140), com "uns músculos de oitenta anos, que fariam a vergonha dos nossos rapazes de vinte" (141), segundo o narrador. A descrição prolonga-se insistindo na sua resistência física e anímica perante as diversas austeridades climáticas que não o impedem de cumprir o seu dever. Homem prático, sem espírito contemplativo, porém alegre, "era perdido por anedotas, das quais podia dizer-se um repositório vivo" (141), e também dono de um coração generoso, cumpridor da máxima bíblica: "que a tua mão esquerda nem saiba o que faz a direita" (MATEUS, 6;3).
O episódio da receção culmina, intencionalmente, na conversa entre os dois médicos que, mesmo tendo interesses em comum, divergem de modo irreconciliável, pois "João Semana era cético em relação à ciência moderna" (DINIS, 2017: 142). Não se trata apenas de um confronto entre teoria e prática, entre irreverência da juventude e sabedoria pela experiência, mas, sobretudo, do conflito ideológico já mencionado, entre as novas ideias e o representante de uma geração obsoleta acusada de estagnar o país. Perante este cenário, o narrador, que nos habituara a demonstrar abertamente o seu parecer ao longo romance, abstém-se. Talvez não seja alheio a isso o facto de o próprio autor ser um médico de formação, ainda muito jovem.
A verdade é que João Semana inspira no leitor memórias de uma antiga e privilegiada nobreza, como se depreende das saudáveis disputas com o reitor, retomando a velha questão de classes; pela índole de valores cavaleirescos, a honra, a fidelidade e a compaixão e pelo transporte equestre. Essa realidade não era compatível com um recém-formado cirurgião, imaturo e instável, chegado de uma metrópole impregnada de positivismo científico. Não obstante o universo referencial ultrapassado e o estatuto em decadência do velho clínico, a sua figura granjeia empatia ao longo de todo o romance.
Os capítulos XVII e XVIII são-lhe quase exclusivamente dedicados. O cavaleiro corajoso, robusto, destemido e de humor apurado é, apesar "das aparências de homem endurecido, de que fazia ostentação" (168), um octogenário sensível ao sofrimento alheio e por isso mesmo amado e respeitado pelo povo. Para além das suas competências médicas, é-nos também apresentado como um lavrador, amante e conhecedor da terra. É o zelador dos bons costumes e "intolerante em coisas de moral" (245), nomeadamente com os seus pares. Se o boato de que Daniel se havia envolvido com uma paciente lhe precipitara um julgamento austero, não menos condenáveis seriam os versos que o arguido lhe fizera. "João Semana não tinha em conta de coisa séria a poesia" (245-246), embora considerasse que se se tratasse de um soneto seria uma falta menos grave. O espírito prático e o gosto clássico do clínico trazem para a cena do romance, ainda que de um modo subtil e até jocoso, um reflexo das querelas literárias, numa época em que havia estalado a célebre Questão Coimbrã.
Ainda a propósito de moral e bons costumes, quando surpreende o encontro de Daniel e Clara, o velho octogenário fica desconfiado e, mais tarde, quando ouve rumores de desentendimento entre os irmãos, acorre para averiguar os acontecimentos e restabelecer a ordem, se necessário, a fim de evitar uma tragédia. No final do romance, ao encontrar um cenário de entendimento entre os protagonistas, despede-se do leitor como o provável parteiro dos futuros filhos de Clara e Pedro e de Guida e Daniel, em sinal de bênção e, simultaneamente, em augúrio de continuidade no exercício das suas funções.
A personagem João Semana teve uma larga sobrevida, não só cinematograficamente com a adaptação d’As Pupilas do Senhor Reitor em sucessivos filmes e na televisão (vejam-se as adaptações cinematográficas de Maurice Mauriad/1924; de Leitão de Barros/1935; de Perdigão Queiroga/1961 e duas adaptações brasileiras para telenovela/1970 e 1994), mas também várias adaptações para teatro em Portugal e no Brasil. No entanto, João Semana teria um lugar de protagonismo em 2005 na minissérie da RTP (com realização de João Cayatte) que adapta As Pupilas do Senhor Reitor centrando a história na personagem do médico. Ainda de salientar a sua produtividade na pintura, nomeadamente, “Este cavalheiro era João Semana” de Alfredo Roque Gameiro, 1904, uma aguarela sobre papel, da Coleção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em depósito no Museu de Aguarela Roque Gameiro.
Ainda hoje persiste a expressão popular "ser como um João Semana" que se vulgarizou no meio da classe médica e depois se generalizou como símbolo de um espírito generoso e altruísta.
Referência
DINIS, Júlio (2017). As pupilas do Senhor Reitor. Edição de Maria do Rosário Cunha. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.
[publicado a 29-11-2016]