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Rosa

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Autor: Alfaguara

Rosa (Afonso Cruz, Jesus Cristo Bebia Cerveja)

A menina-moça Rosa povoa a paisagem e a literatura árida de Jesus Cristo bebia cerveja (2019), de Afonso Cruz. Filha de Isabel, uma arqueóloga que gostava de homens brutos, cujas frias mãos fazem com que a menina a associe à santa da igreja, e de João Lucas Marcos Mateus, homem da terra, Rosa tem a vida marcada pela tragédia. A mãe, desencantada com o casamento e sem vocação para a maternidade, passa a se envolver com outros homens e a afogar o tédio na bebida. Rosa sentia falta da mãe e tentava se aproximar, ficando perto da porta fechada do quarto onde Isabel se deitava com outros homens: “Era por isso que deitava a cabeça no chão, junto à porta, para sentir, vindo da sua mãe, algo que não fosse frio como mãos de porcelana” (Cruz, 2019: 22). É a frieza da mãe que a faz pensar que Isabel se transformou na Virgem Maria, heresia pela qual Rosa é muitas vezes castigada pelo padre.

O pai de Rosa, por sua vez, deixado pela esposa, abandona-se, também ele, à bebida e a menina fica entregue à avó Antónia que, por fim, acaba sendo cuidada pela neta. Nem os nomes dos quatro evangelistas foram suficientes para salvar o filho de Antónia que acaba se matando enforcado numa figueira depois de ter sido “colhido por um tractor enquanto apanhava medas de feno” (113). Sina parecida fora cumprida pelo avô, perseguido pelo sargento que desconfiava ser ele autor de uma série de assassinatos. Mata-se na frente da neta, atirando-se ao poço seco. A narrativa retrata assim Rosa-moça, a cuidar da avó.

Rosa é representada como uma moça de aspecto selvagem, o corpo coberto por uma penugem – o buço, as pernas – desperta o desejo dos homens, de quem, por vezes, precisa se esquivar, como ocorre com o bombeiro que a acompanha na traseira da ambulância, enquanto levavam Antónia ao hospital. A velha havia passado mal enquanto a neta chupava um ovo de pardal que havia caído do ninho. Adormece com o ovo na boca e sonha que voa. Quando acorda, quebra-o nos dentes e o engole, pouco antes de ouvir o barulho da avó no aposento ao lado.

A personagem transita num Alentejo universal, marca do que foi chamado de “novíssima literatura portuguesa” (Silva, 2016), que se transforma em Jerusalém, depois que o professor Borja, com seu inveterado racionalismo científico, se depara com a moça carregando a avó num carrinho de mão para assistir à missa. A relação com o professor, a admiração que ele lhe desperta e seu fascínio por westerns é o que vai dar o desenlace dessa história.

A intertextualidade, marca constante na produção ficcional de Afonso Cruz, como observa Daddi (2018), também se evidencia neste romance, cujo desfecho é surpreendente. Em determinado momento, Borja vai até o quarto de Rosa e diz que pretende escrever na parede do quarto de Miss Whittemore versos de Diógenes de Oenanda, como costuma fazer. Rosa, então, pede que ele acrescente a última frase de seu livro favorito, o western A Morte Não Ouve o Pianista, cujos seis primeiros capítulos são apresentados no romance como um livro à parte. O professor, então, "sai com as suas barbas intensas" (234). Quando Rosa entra no quarto, a inglesa repousa sob efeito de sedativos, enquanto Borja escreve na parede. Em seguida, Rosa empunha a faca "com uma frieza profissional" e mata os dois, deixando como epitáfio a frase recém-escrita: “Morro por amor, sem isso não vale a pena estar vivo. A minha vida foi feita para se entranhar na tua, como uma faca espetada no coração” (264).

E assim é com Rosa: abandona a avó aos cuidados da vizinha tendo coroado a vida do professor com uma sobrevida acadêmica provocada pela tragédia, e se retira para Lisboa onde definha como prostituta até morrer pedindo luz, lembrando-se do namorado da adolescência: “No derradeiro momento, Rosa vê o pastor Ari com a sua lanterna e corre para ele com os braços abertos e um sorriso emoldurado pela sua alma do campo” (2019: 249).

[publicado a 7-7-2025]

 

Referências:

CRUZ, Afonso (2019). Jesus Cristo bebia cerveja. Lisboa: Penguin Random House Grupo Editorial, 2019.

DADDI, Ludovica (2018). "La Transtestualitá in Afonso Cruz: Tra Ironia e Conoscenza", in E-Revista de Estudos Interculturais do CEI-ISCAP, n.º 6. Disponível em: https://www.iscap.pt/cei/e-rei/n6/artigos/Ludovica-Daddi_La-transtestualita.pdf. Acesso em: 13 de fevereiro de 2025.

SILVA, Gabriela (2016). "A novíssima literatura portuguesa: novas identidades de escrita", in Revista Desassossego, vol. 08, n.º 16, pp. 6-21, dez./2016. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v8i16p6-21. Acesso em: 13 de fevereiro de 2025.

Jeanine Geraldo Javarez