João Jorge é a personagem central de Hoje estarás comigo no paraíso (2019), de Bruno Vieira Amaral, romance com uma linguagem de forte caráter autobiográfico, no qual o autor constrói o enredo a partir de um evento marcante em sua vida: o assassinato de seu primo João Jorge Rego, a quem dedica a obra. O romance descreve a construção da sua narrativa, desde a ideia inicial, que surgiu durante a leitura de Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, até sua concretização. Ao percorrer as páginas do livro de García Márquez, o autor percebe uma semelhança inquietante entre a morte de Santiago Nasar, personagem da obra, e a de seu primo João Jorge. Em suas palavras, “à medida que avançava na leitura, era como se cada página despertasse em mim um eco adormecido. Eu já ouvira uma história semelhante. Era a história de João Jorge, que se dizia ter sido apanhado a roubar porcos, morto como um porco, com a faca usada para os abrir” (Amaral, 2019: 15).
Durante o processo de escrita, o narrador-personagem, Bruno, se questiona: “Se a morte de João Jorge teria a mesma grandeza literária, se haveria na sua história um Bayardo San Román [...]; porém, era tão grande e imponente o silêncio de Angela Vicario, tão poderoso o desejo de vingança dos seus irmãos, que nem a força da minha imaginação conseguia elevar o caso de João Jorge acima da realidade mortiça e cinzenta onde tudo acontecera” (15).
João Jorge é um jovem negro e alto, morto nas hortas a caminho da Vila Chã, subúrbio de Lisboa, em 1985, quando tinha apenas 21 anos. Sua presença sugere reflexões metaficcionais sobre o processo de criação do romance, ao mesmo tempo em que abre caminho para a compreensão da vida, do poder e dos conflitos em territórios que buscam independência. Esses espaços se destacam como a escrita de um lugar forjado por diferentes pessoas, com objetivos muitas vezes contraditórios. Assim, João Jorge denuncia uma realidade histórica desigual, as falhas do sistema jurídico e político e as relações de oposição entre opressores e oprimidos, mostrando como essas dinâmicas se repetem, mesmo com a inversão dos papéis.
A figura de João Jorge propõe um caminho para preencher os vazios causados pela perda: “Percebi então que para chegar a João Jorge e me libertar dele teria de esquecer tudo, apagar a informação e refazer apenas o momento em que ele entrou na barraca onde os algozes o esperavam” (353).
Segundo Iser (1979), os vazios desempenham um papel crucial na construção do caráter estético do texto, pois são esses espaços não preenchidos que expandem a consciência reflexiva do leitor. Esses vazios forçam o leitor a dialogar com a obra, promovendo uma transformação tanto no seu entendimento quanto no próprio leitor, ao longo do processo de leitura. Em Hoje estarás comigo no paraíso, Amaral estabelece esse jogo dialético entre o dito e o não dito, entre presença e ausência, transformando a leitura em uma experiência dinâmica.
João Jorge, portanto, não é apenas um silêncio ou lembrança vaga, mas uma condição que dá contorno ao que foi expresso, conferindo-lhe uma nova camada de significado. Essa técnica incentiva uma conexão que precisa ser reativada pelo leitor a cada pausa entre cenas ou fragmentos, desafiando-o a gerar sentido, a atribuir significado e, ao mesmo tempo, a descobrir a relação, nem sempre óbvia, entre as personagens. Dessa forma, Bruno vai se desnudando ao longo da narrativa, revelando pistas e sinais ao leitor sobre a maneira como ele ficcionaliza a história de seu primo João Jorge, transformando-o em um reflexo de sua própria busca por significado e compreensão.
Referências:
AMARAL, Bruno Vieira. Hoje estarás comigo no paraíso. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: LIMA, Luiz Costa (coord.). A Literatura e o Leitor: Textos de Estética da Recepção. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1979, p.83-132.
[publicado a 13-6-2025]