Jaime Toledo, personagem do romance Naufrágio (2022), de João Tordo (1975), é um famoso escritor português, já há dez anos em bloqueio criativo e há um ano com diagnóstico de câncer, quando é acusado de assédio por uma série de mulheres, supostamente cometidos em sua juventude. As mulheres que o acusam são as primeiras do que vem a se tornar o movimento social e virtual “#metoo”, que vem causando uma onda de revisionismos de comportamentos e acusações de abuso, perpetrados, em especial, por homens em posições de poder e fama, ao longo dos anos.
Embora não tenha vívida memória da maior parte das acusações, Toledo se reconhece como, de fato, mulherengo, embora não com a virilidade implicada pelo rótulo, mas de um modo depressivo e inquieto, caracterizado pela incapacidade de amar verdadeiramente alguém. Embora com isto aceite a culpa, também a relativiza, compartilhando-a com as vítimas ou comparando-se com infratores piores, e buscando na religiosidade, que não é seu forte, algum sentido para as desgraças que vêm se sucedendo em sua vida.
Para Toledo, a arte e a moralidade relacionam-se tal como a criação e a transgressão. É da natureza do artista destruir fronteiras sociais e pessoais pelo simples fato de ser o que é, aludindo ao mito do gênio incompreendido, ao passo em que associa linguagem, consciência e memória à literatura. Esta última é uma forma que substitui a vida verdadeira em mais de um sentido.
É assim que se manifesta a série de relações e construções literárias que norteiam a narrativa de João Tordo. Toledo estabelece o ato da escrita literária no pólo oposto ao da vida, uma vez que a obsessão com o solitário trabalho de escrever o impede de aproveitá-la, mas também pondera a redescoberta de si por meio da escrita; enquanto isso, parece não perceber que só melhora de sua depressão quando interage com outras pessoas, especialmente com a família e amigos, dentre os quais destacam-se Rafael, amigo de longa data também acusado de uma lista de assédios; Ren, o rapaz de quem compra Narcisse, o pequeno barco onde vai morar quando perde quase todos os seus bens materiais; e posteriormente Alice, uma das mulheres que primeiro o acusou, mas que vem vê-lo quando descobre o estado em que se encontra.
O Narcisse é uma embarcação velha e sem motor, porém, como diz Ren, mágica, pois trabalha, em quem nela mora, o ciclo da vida e renascimento, tal como o balanço da maré. Deste modo, Toledo espera que ela lhe devolva a escrita, configurando-se o naufrágio do título em uma forma metafórica, como o barco e a vida da personagem que não saem do lugar e do isolamento materializado no porto.
Mas a narrativa em primeira pessoa ainda tem muito a dizer, tanto expressamente, quanto pelo que não diz, com reviravoltas que alteram substancialmente as implicações da embarcação Narcisse como um símbolo de renascimento. As revelações reconfiguram a dinâmica de Toledo com outros personagens, e uma consciência que não condena totalmente nem agressor nem vítima, mas pondera as malícias e virtudes de ambas as partes, nem sempre sã, nem sempre hábil em se expressar.
Referência
TORDO, João. Naufrágio. Lisboa: Companhia das Letras, 2022.
[publicado a 7.5.2025]