Gisberta, de Pão de Açúcar (2021), por Afonso Reis Cabral, é personagem inspirada em uma figura real, uma mulher transexual, brasileira, imigrante e marginalizada, que se torna o eixo central de uma trama que aborda a violência de gênero, a exclusão social e a desumanização de corpos dissidentes. Sua condição de toxicodependente e a visível saúde frágil acentuam sua vulnerabilidade no contexto narrativo, potencializando a carga simbólica de sua figura na obra.
Vivendo da prostituição em uma zona periférica da cidade do Porto, Gisberta acaba se abrigando em uma obra inacabada de um edifício conhecido como Pão de Açúcar, um espaço degradado que simboliza sua condição de abandono e invisibilidade social. Envolvida com o uso de heroína, ela contrai o vírus HIV e desenvolve tuberculose, o que agrava ainda mais sua situação de precariedade e isolamento. A descrição de sua aparência, feita de forma crua e impactante, reforça a dimensão de desamparo que permeia sua existência: mulher magra, com o cabelo preso em um coque desajeitado, exalando um odor forte. Sua aparência revelava sinais de desleixo, com sujeira acumulada nas reentrâncias do nariz e nós espalhados pelo cabelo de forma desordenada.
A memória na narrativa funciona como um elo entre o presente e o passado da personagem. Por meio de recordações fragmentadas, Gisberta revisita momentos de sua infância no Brasil, evocando cenas de sua convivência familiar. As lembranças de suas duas irmãs mais velhas, da carpintaria do pai na garagem e dos gritos da mãe chamando-a pelo nome de nascimento, “Gisberto”, revelam a persistência de uma identidade em transformação.
Após essa fase, Gisberta vive um período na França, apresentando-se em cabarés parisienses como transformista, uma experiência que simboliza um momento de afirmação de sua identidade e autonomia. No entanto, essa trajetória sofre uma reviravolta quando ela decide ir para Portugal, onde enfrenta um processo de degradação progressiva. Longe do brilho dos cabarés, Gisberta é tragada pela miséria, pela precariedade social e pela invisibilidade. Expulsa da pensão em que recebia os clientes, devido à doença cada vez mais evidente, e por não ter como pagar moradia, acaba se abrigando numa obra inacabada de um edifício, o Pão de Açúcar.
Já isolada na cave do edifício, na tentativa de estabelecer algum vínculo humano, Gisberta deixa um bilhete na bicicleta que Rafael reformava e mantinha guardada no Pão de Açúcar, marcando o início de uma amizade. No entanto, a rotina discreta de oferecer ajuda, manter conversas e tentar melhorar as condições de vida de Gisberta é interrompida por Fábio, um adolescente mais velho que, liderando os jovens Grilo e Leandro, inicia uma sequência de agressões físicas e psicológicas contra Gisberta, que inclui insultos, estupros e espancamentos prologados. A violência se intensifica com a lógica de coação e domínio que permeia a relação entre eles e o corpo vulnerável de Gisberta.
Por fim, convencidos de que Gisberta estava morta, os jovens jogam seu corpo em um poço. No entanto, após o resgate, o relatório do médico-legista revelou que, embora seus pulmões apresentassem os sinais típicos da tuberculose, havia uma grande quantidade de água aspirada, o que indicava que Gisberta ainda estava viva quando foi lançada no poço. Gisberta encarna, assim, o destino dos corpos marginalizados, marcados pelo desprezo, pelo abandono e, por fim, pela morte.
Gisberta encontra-se simbolicamente preservada na música “Balada de Gisberta”, composta pelo músico português Pedro Abrunhosa e eternizada na voz de Maria Betânia, cuja interpretação emocionada deu a sua história projeção internacional.
Referência
CABRAL, Afonso Reis (2021). Pão de Açúcar. Rio de Janeiro: Harper Collins.
[publicado a 6.4.2025]