Berta Helena é a protagonista e também narradora de “O Belo Adormecido”, conto mais longo dentre os reunidos na coletânea de mesmo título (2003), de Lídia Jorge. O enredo estabelece uma relação intertextual com o clássico infantil “A Bela Adormecida” e, para além da mudança para a forma masculina, revela uma inversão de papéis sociais, que conta a história de um encontro entre uma atriz já madura e um rapaz adolescente.
No conto, a protagonista reflete sobre as especificidades do comportamento humano: “Ser-se único, como se sabe é estatuto que dá volta à cabeça de qualquer um” (Jorge, 2004: 16). Assim, a narradora autodiegética cria uma atmosfera de revelações graduais e fragmentadas, ressaltando a importância de cada peça no quebra-cabeça narrativo.
Nas cenas iniciais, Berta Helena tem um encontro com um homem desconhecido no Hotel Ritz, e lembra que há cerca de seis meses havia decidido passar um pouco mais de dois meses em uma pousada “vazia” para decorar as falas de um papel importante que iria representar. Pretendia, nesse período, perder cerca de dez quilos, vinte anos de idade e outras modificações indizíveis, tendo em vista a transmutação para um personagem masculino, “Orlando”, de Virgínia Woolf.
A certa altura, ela é surpreendida por um grupo de homens que se hospeda bem próximo ao seu bangaló, e Francisco, um rapaz muito jovem, passa a visitá-la frequentemente, tem o desejo de ser adulto e de iniciar a sua sexualidade. Já ela, mulher independente e segura de si, deseja o reconhecimento de ser uma grande atriz, contraria suas convicções ao desenvolver com aquele jovem uma relação de sedução, marcada por avanços e recuos: “Sobre o alvoroço desse dia, não terei problemas em dizer que Berta Helena é uma mulher de amores e de ódios, de penas e de raivas, sentimentos extremos, cinza e brasas misturadas, e que ela mesma sou eu” (20). Falta compreensão, por parte de Berta Helena, sobre o desfecho enigmático e trágico, que remete ao tema do adormecido, apesar de sugerir que os sinais estavam evidentes: “Era um desfecho. Como é que eu não tinha pressentido o desfecho vir a caminho, se todos os sinais me haviam sido dados?” (73).
Berta Helena compartilha suas experiências e percepções, porém, não delineia um desfecho claro sobre Francisco. Voltando ao momento presente, ela expressa sua frustração ao ver adiada a estreia da peça. A alusão ao teatro em todo o conto como uma metáfora da vida sugere a universalidade das experiências compartilhadas. Percebe-se na protagonista uma contemplação profunda e enigmática sobre a natureza humana e as relações interpessoais e, nessa esteira, a complexidade de sua inação expressa um desejo latente de algo que não pode ou não quer explicitar, há uma sensação de cautela, quase medo diante do rapaz, percebendo nele uma fonte de perigo.
Parte significativa da vida da protagonista narradora é destinada à perda. Além disso, ela atribui ao teatro a capacidade que possui de lidar, aceitar e enfrentar as inevitáveis perdas no decorrer da vida, como parte essencial de sua trajetória: “Se fosse em cena, como seria?” (59). Berta Helena apresenta a perspectiva feminina do olhar testemunhal, a personagem que olha para si mesma, em processo de autoconhecimento.
Referência
JORGE, Lídia (2004). O belo adormecido. Lisboa: Leya, pp. 11-77.
[publicado a 6-4-2025]