Osvaldo Campos é o protagonista do romance Combateremos a Sombra, de Lídia Jorge. Publicado pela primeira vez em 2007 e agraciado com o Prêmio Charles Brisset da Associação Francesa de Psiquiatria em 2008, o livro apresenta a figura de Osvaldo Campos, psicanalista, professor universitário e que tem cerca de 45 anos de idade. O início da diegese revela-nos o primeiro grande conflito da personagem: o casamento fracassado com Maria Cristina, que mantém um caso extraconjugal com Navarra, antigo sócio de Osvaldo. As constantes brigas e desgostos da mulher com a agenda de atendimentos do psicanalista levam ao fim do casamento e ao “disvórcio” — corruptela da palavra divórcio, como define o próprio Osvaldo. A descoberta do romance de Maria Cristina com Navarra, as relações com os pacientes e a escrita do artigo “Quanto pesa uma alma?” decorrem no tempo de aproximadamente três meses, a partir da noite do Milénio, na virada para o ano 2000.
Osvaldo Campos entende-se como um decifrador de histórias; através do atendimento psicanalítico procura nas conversas com os pacientes desvendar-lhes os segredos da alma e o funcionamento dos traumas e memórias. “Deveríamos rir-nos da fragilidade da memória, ou pelo menos das artimanhas do seu esquecimento.” (Jorge, 2014: 9), diz-nos a narradora de Combateremos a Sombra, a jornalista Marisa Octaviano. Maria London Loureiro, a paciente magnifica; Elísio Passos, jornalista; Gisela Baptista, uma atriz; General Ortiz; e Lázaro Catembe, jardineiro, são os pacientes que compõem o grupo de vozes do romance de Lídia Jorge. Através das suas narrativas pessoais formamos a personalidade do protagonista: um homem solidário e preocupado com a existência humana, com ares quixotescos, à procura de mundo mais justo e melhor. Seus pacientes estão divididos em dois grandes grupos: miserabilis e pagantibus. Miserabilis era a designação para aqueles pacientes que cumpriam a quota de caridade, ou seja, não pagavam pelas consultas; pagantibus, por sua vez, eram os que tinham condições de custear seus tratamentos. Ana Fausta, secretária do psicanalista, anotava na agenda do consultório, a lápis, a categorização dos atendimentos. Para desgosto de Maria Cristina, o número de miserabilis era maior do que o número de pagantibus.
No consultório do Prédio Goldoni, Osvaldo Campos ouve com atenção as diferentes e complexas narrativas de seus pacientes. Maria London, no entanto, é a mais intrigante. Filha de um importante arquiteto, revela em seus sonhos acontecimentos que parecem associados à corrupção e ao tráfico. De acordo com Maria Graciete Besse, “em vez de guardar a neutralidade que lhe impõe a sua profissão, o terapeuta indignado passa à acção e, transformado em detective, persegue pistas, clarifica os crimes, identifica e denuncia os delinquentes, acabando, tal como uma figura crística, misteriosamente assassinado numa sexta-feira santa.” (Besse, 2019:124).
Além dos pacientes, existe Rossiana de Jesus Inácio, uma fotógrafa que vive escondida num apartamento próximo ao consultório de Osvaldo. A partir de uma noite de amor na Casa da Praia, localizada na Praia da Maçã, ambos se aproximam, conhecendo suas histórias. Osvaldo, a partir das falas de Maria London e de Rossiana, desencadeia uma vontade investigadora que terminará com o seu assassinato encoberto pela suspeita de suicídio. Entram em cena a jornalista Marisa Octaviano e o inspetor de polícia Toscano, personagens que irão lhe revelar as impunidades e armadilhas de um sistema deteriorado pelo poder e iniquidade.
Osvaldo Campos pode ser entendido como uma figura trágica, uma vez que comete a desmedida de questionar a corrupção. Na percepção do psicanalista, sua própria existência dedicava-se a buscar a cura para os problemas da alma e os infortúnios sociais. De modo pungente, ajuda aqueles a quem julga necessária a escuta da psicanálise, bem como procura entender como esses mesmos indivíduos se deslocavam no cenário social ao qual pertencem. Jane Tutikian define Osvaldo Campos a partir de uma ideia de desencanto, própria do século XX: “através de seus pacientes, é um Portugal desencantado com o que percebe ser.” (Tutikian, 2014: 98). O momento de catarse, da revelação das verdades e obscuridades que motivam esse desencanto, é também o de sua morte.
Ao escutar seus pacientes, Osvaldo Campos, forma um fio de Ariadne de silêncios, de possibilidades de compreensão do que não é dito, mas que aparece em forma de pequenas descobertas que acabam por revelar grandes dilemas existenciais, políticos e sociais. O mergulho nos diferentes inconscientes dos seus analisados proporciona a construção de relações de causa e efeito com a realidade, potencializando o exercício da escuta. E são essas as sombras que Osvaldo Campos combatia em suas sessões de análise e na percepção singular de mundo e dos silêncios impostos pela vida e seus reveses.
Referências
BESSE, Maria Graciete (2019). “Desafios do contemporâneo na ficção de Lídia Jorge / Challenges of the Contemporary in the Fiction of Lídia Jorge”, in Revista do Centro de Estudos Portugueses, 39 (61), pp. 117-129. https://doi.org/10.17851/2359-0076.39.61.117-129. (acesso a 2.4.2025).
JORGE, Lídia. Combateremos a Sombra. São Paulo: Leya, 2014.
TUTIKIAN, Jane (2014). “O Tempo condicional: questões de identidade em Lídia Jorge e Helder Macedo”, in Revista ECOS, 17 (2).
https://periodicos.unemat.br/index.php/ecos/article/view/242 (acesso a 2.4.2025).
(publicado a 2.4.2025)