Personagem/protagonista do romance A corte do norte (1987), considerado, pela crítica, uma narrativa de estrutura complexa, fragmentada, de perfil genológico híbrido, aproximando-se pontualmente do romance histórico.
Rosalina de Sousa é uma personagem construída nesse quadro formal revelador de uma estética do inacabado e do “modo de suspensão” (Lopes, 1992: 17). Existem, de facto, vários graus de “suspensão” na elaboração do perfil da personagem. Desde logo, a pluralidade de nomes: no Capítulo I, a personagem é designada por “senhora do Funchal e que foi baronesa de Madalena do Mar” (Bessa-Luís, 1987: 15), para, logo de seguida, no Capítulo II, se indicar a “alcunha” que lhe fora atribuída pela povoação da Corte do Norte, “Boal” ou “Boal de cheiro porque é uma casta de uva também conhecida por «marota»” (45) e, por extensão, “cabrita”, numa alusão clara ao seu comportamento subversivo e ao costume de colher ovos de pombos bravos.
Partindo alegadamente da biografia de uma personagem histórica – a atriz Emília das Neves (1820-1883) –, o narrador opera uma simbiose singular entre a personagem, o espaço e o tempo, no âmbito de uma alegoria ficcional que vive de desdobramentos identitários constantes e quase obsessivos. A apresentação de Rosalina faz-se, assim, em primeira instância, pela justaposição do seu retrato físico com o de uma outra figura histórica, Sissi, a imperatriz da Áustria, que chegou à Madeira no inverno de 1860, em convalescença. Antes mesmo de descrever as circunstâncias da intriga que rodeiam Rosalina, o narrador sublinha a “parecença flagrante” (14) das duas, como se de sósias se tratasse. O primeiro momento descritivo surge logo de seguida, quando o narrador assume, de forma assertiva, que “(…) este não é um romance da formosa Imperatriz (…) Este livro trata do trajeto moral de Rosalina de Sousa, senhora do Funchal e que foi baronesa de Madalena do Mar” (14-15). Uma vez reconhecida a matéria diegética, o narrador retrocede para o casamento de Rosalina, aos dezasseis anos, com Gaspar de Barros “do tronco dos Cabral de Melo” (15), alude aos dois filhos nascidos “em dois anos de vida conjugal” (18), para passar, como se de uma evidência espectral se tratasse, para outra sobreposição de identidades: Rosalina poderia ser a bela Emília de Sousa, atriz retirada de um bordel lisboeta por Garrett, que a ensinou a declamar e a lançou no teatro, lugar que abandonou para ceder à paixão de Gaspar de Barros e o acompanhar até à Madeira, tornando-se baronesa de Madalena do Mar.
O cruzamento da ficção com o real é tão natural quanto subtil, neste incipit, sugerindo-se a ancoragem do romance num tempo histórico (Pereira, 2008: 311) e, sobretudo, privilegiando um discurso em forma de postulado: “[Gaspar de Barros] tinha a Corte do Norte e Rosalina, não se sabe se mística morgada, se pérola do teatro arrancada ao colar do velho sátiro Garrett” (Bessa-Luís, 1987: 20). Assim se associa Rosalina, simultaneamente, a uma outra personagem e a um lugar – a Corte do Norte –, antes de se descrever, de forma breve, a ida repentina da personagem para esse espaço de refúgio, quando a sua vida se modificou “extraordinariamente” (32) pela partida de Elisabeth de Áustria, do Funchal. A sinopse termina com a breve referência à morte da protagonista, no espaço da Corte do Norte – “morreu passado pouco tempo, de desastre, despenhando-se nas falésias do mar, e Gaspar casou com a turbulenta e alegre Dozy” (33). Esta sequência de acontecimentos seria inesperada, não fora a advertência final do narrador que rompe, deliberadamente, o tom neutral, para impor o enigma como essência do espaço da ficção onde se constrói a personagem, e de uma escrita romanesca obedecendo, ora ao princípio temporal da cadência geracional, ora ao princípio estético da especularidade, enunciado desde o início: “A história parece terminar aqui, uma vez que nos propusemos ser a história de Rosalina. Mas aqui começa apenas o enigma e os seus ornamentos” (33).
É, de facto, a partir deste final, a partir da sugestão do corpo nunca encontrado, que Rosalina de Sousa se erige em personagem de uma centralidade quase obsessiva para as cinco gerações gradualmente configuradas nos diferentes capítulos, na exata medida em que a sua existência surge ligada ao enigma do seu desaparecimento. Nessa medida, a fragmentação da personagem dita a dispersão temporal das outras personagens que passam pela Corte do Norte e a dispersão da própria narrativa. A partir do momento em que Rosalina se cruza, em forma de “memórias assombradas” (95), com as diferentes personagens da intriga que não resistem à vertigem de tentar decifrar o enigma (e de escrever a história do romance), regressando todas à Corte do Norte, o retrato vai sendo configurado, não escapando à ex-centricidade óbvia da marca espectral.
O enigma que envolve o desaparecimento da personagem confunde-se, assim, com o enigma do seu perfil, com a projeção da sua existência numa dimensão mítica e lendária, fixada, desde logo, no Capítulo II, na relação insólita do olhar de Rosalina com o quadro italiano representando a cena bíblica de Judite e Holofernes, que descobre, por acaso, na casa dos Cossart. A cena e o quadro surgirão repetidamente no romance, acentuando a perversão quase irreal (pictórica/ecfrástica) do comportamento de Rosalina, plasmada no momento-chave em que a personagem projeta a sua existência no crime hediondo de Judite a degolar o seu hospedeiro, ficando potencialmente ligada a Emília de Sousa, como salienta o narrador, em comentário: “A Judite. Era neste ponto que Emília e Rosalina se encontravam como num passeio de barco. (…) Se Rosalina teve de facto duas identidades, de maneira que não foi possível distingui-las, então Rosalina foi a atriz Emília de Sousa” (53).
Conivente com este jogo de espelhos, o facto de Rosalina, Elisabeth de Áustria e Leopoldina, mulher do feitor da Corte do Norte que manteve uma relação amorosa com João de Barros, bisneto da protagonista, serem por este consideradas “histéricas sem salvação” (143), valoriza a dimensão teatral de Boal, porventura aquela que melhor traduz a essência estética da sua figuração na diegese e no discurso do narrador: “Como se pode entender, a vida de Rosalina foi breve e teve um curto período fulgurante. Que espírito a habitou, que enfermidade a desgastou a ponto de a deixar à mercê duma paixão sem objecto e sem rosto, não o podemos saber. Quando muito, desenhamos alguns quadros da sua vida que podem ilustrar pelo menos a sua natureza algo teatral” (47). É esta premissa ontológica que legitima a projeção ou a sobrevivência de Rosalina em Águeda (neta), Rosamund (trineta) e Gramina Serena (tetraneta), personagens que sentem, elas próprias, quando habitam a Corte do Norte, o fascínio de uma identificação com Boal, sem que o retrato (ou a sua sobrevivência) se esgote, no final em aberto.
Rosalina será o fantasma parado no tempo que se manifesta no tempo das outras personagens, na sua “encantadora irrealidade” (251). Assim, Rosamund que, inexplicavelmente, se tornou “igual a Rosalina e, sem a ter conhecido, tinha a noção de que ela reagia tal como Rosamund em todas as situações da vida” (173), encenou o episódio da hipotética morte de Boal, nas falésias da Corte do Norte, estabelecendo-se entre ambas, pela substância da teatralidade, uma “ponte como a do caminho dos mortos, oscilando sempre sobre um imenso espaço vazio” (186). Serena ou Gramina, filha de Rosamund, “foi, de todos os descendentes de Rosalina de Sousa, quem mais se pareceu com ela” (74), encerrando-se na quinta Crossart (espaço quase tão simbólico como a Corte do Norte) para escrever poesia. Pretendendo descobrir se “Boal tinha simplesmente desaparecido no ar, nas falésias, ou no largo mar” (260), procurou indícios durante as suas “peregrinações de Verão à Corte do Norte” (260). Uma vez mais, Rosalina de Sousa revela-se às outras personagens que tentam construir a sua história (e a história do romance) e nas quais se projeta ou que nela se projetam, através de objetos, isto é, através do símbolo: Gramina abre todas as gavetas de um contador indiano que pertencera à protagonista, de acordo com os sírios que ocupavam a casa de João Sanha, na Corte do Norte, descobrindo, “entre um cisco de fitas e de botões velhos” (262), um bilhete de teatro datado de 1 de dezembro de 1860. A descoberta, descrita no último capítulo do romance, recupera o traço essencial de Rosalina – a teatralidade – e parece, por momentos, através do raciocínio de Gramina, ligar “Boal à realidade” (260), desconstruir a capacidade onírica da figura lendária, fazendo-a encarnar a identidade de uma atriz que “passava períodos muito longos fora da ilha, por razão dos seus contratos” (263). Nessa medida, Rosalina poderia, uma vez mais, ter sido Emília de Sousa, casada com João Sanha, de acordo com os ficheiros de João de Barros, avô de Gramina, tanto mais que “dizia-se que a Judite, tão admirada por Rosalina, no quadro da casa Cossart, se parecia com Emília de Sousa quando representou Giacometti (…)” (262).
No âmago da consciência da des-ilusão romanesca (“Correndo o perigo de desiludir, direi que este não é um livro de amor” – 277), o narrador pensa, em abstrato, a figuração da personagem, através de Rosalina de Sousa, podendo esta ser entendida como materialização da dissipação (pós-moderna) do retrato, do inacabamento diegético, e, no limite, da impossibilidade do romance, dentro da ficção. Na escrita enigmática de Agustina, e num dos seus romances mais complexos, a personagem de Rosalina de Sousa pode ser entendida como o pilar de um exercício retórico em torno dos paradoxos da ficção quando redimensionada num hipotético romance histórico, no tempo da História.
É esse, de resto, também, o entendimento de João Botelho, ao produzir, em 2008, o filme A corte do norte, adaptação do romance de Agustina Bessa-Luís. A obsessão pela iteração e cruzamento dos perfis das figuras femininas, partindo da personagem da baronesa de Madalena do Mar, leva o cineasta a seguir a opção estética de manter uma mesma atriz – Ana Moreira – a representar Rosalina, Sissi, Emília de Sousa, Águeda e Rosamund (já que Gramina Serena não surge no filme, e fica, talvez, para além dele). A meta-reflexividade, o exercício retórico em torno da sobrevivência plástica da personagem e do espaço, prolongam a escrita de Agustina na escrita cinematográfica, tanto mais que João Botelho insiste na presença constante da voz off de uma narradora, no feminino – a voz de Maria João Cruz ou, porventura, da própria Agustina –, que torna presente a materialidade do texto do romance e os mecanismos estéticos de construção da personagem, das sucessivas personae.
Referências
BESSA-LUÍS, Agustina (1987). A Corte do Norte. Lisboa: Guimarães Editores.
LOPES, Silvina Rodrigues (1992). Agustina Bessa-Luís. As hipóteses do romance. Lisboa: Edições Asa.
PEREIRA, Elsa (2008). “A Corte do Norte, de Agustina Bessa-Luís, ou o romance da saudade”. Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas. Porto, II Série, XXIII: 307-324.
[publicado a 08-03-2021]