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Jacinto

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Autor: António
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Autor: Capa da edição Ãtica.

Jacinto (Eça de Queirós, A Cidade e as Serras)

Descendente de uma família aristocrática lusitana de grande fortuna patrimonial, Jacinto, o protagonista formal do romance semipóstumo de Eça de Queirós - A Cidade e as Serras, publicado em 1901, habita em Paris um luxuoso palacete, localizado no n.º 202 da Avenida dos Campos Elísios. O seu avô, conhecido em Lisboa por D. Galeão, miguelista convicto, tinha-se exilado voluntariamente em Paris depois do triunfo da Revolução Liberal; o derradeiro sobrevivente da estirpe não conhecia sequer Portugal, no momento em que o narrador homodiegético, o seu amigo Zé Fernandes, começa a relatar a sua história.

Casual ou estrategicamente, a narrativa de Zé Fernandes coloca imediatamente em destaque a fortuna do protagonista, colocando esse elemento acima de qualquer outro que, numa relação de amizade, poderia ter maior relevância. “O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival” (Queirós, 2008: 11). Segue-se a enumeração do património imobiliário, que cobre todo o país, e a descrição dos antecedentes familiares imediatos de Jacinto, passando pelo encontro do seu avô com o então infante D. Miguel, que o ajudou a levantar-se quando aquele escorregou numa casca de laranja. Depois da morte de Jacinto “Galeão”, a esposa, D. Angelina Fafes, recordando a tormentosa viagem de ida, nunca quis voltar a Portugal. O filho de ambos, o Cintinho, de saúde débil, faleceria ainda antes de a sua esposa, filha de outro exilado absolutista, ter dado à luz “o Príncipe da Grã-Ventura”, como Zé Fernandes chama ao seu amigo Jacinto.

Chegado a Paris para realizar estudos universitários, depois de ter sido expulso da Universidade de Coimbra, Zé Fernandes rapidamente se torna no maior amigo de Jacinto e no seu cronista. Há, no entanto, alguma ambiguidade (ou ironia) no discurso encomiástico com que o narrador caracteriza a personalidade e as ações do seu amigo, dando-se sempre destaque à fortuna pessoal, ao relevo social que esta lhe permite atingir, e à sua propensão para captar, no burburinho emanado pelas disputas científicas e filosóficas que caraterizavam o final do século XIX, sobretudo as Ideias Gerais.

É sabido que A Cidade e as Serras é um dos romances mais celebrados de Eça de Queirós, sendo especialmente louvado pela descrição realista da paisagem física da vertente norte das margens do Douro. Mas se a descrição do espaço físico obedece a esse realismo tão rigoroso que nos permite localizar com relativa precisão os lugares que inspiraram o autor, a descrição da personagem principal e dos seus comportamentos está completamente dependente da perspetiva conservadora e provinciana de Zé Fernandes. Na realidade, a opção pelo discurso de narrador homodiegético não permite o acesso, tão característico da ficção naturalista, à corrente de consciência da personagem central da narrativa.

No início do relato, Jacinto vive em Paris bem integrado na alta sociedade da capital francesa e rodeado do maior luxo e ostentação. Absolutamente convicto do triunfo da ciência sobre o obscurantismo e da superioridade da cidade sobre o campo, entendia que o grau de felicidade humana estava intimamente associado ao grau de civilização. Tornara-se famosa no Bairro Latino a fórmula algébrica da sua filosofia de vida, simplificada por um discípulo francês, segundo a qual a suma ciência multiplicada pela suma potência era igual à suma felicidade.

Quando Zé Fernandes regressa a Paris, depois de um período de sete anos passados no Norte de Portugal, é surpreendido pelo reforço da tecnologia introduzida por Jacinto na sua mansão dos Campos Elísios. Telégrafo, telefone, teatrofone, conferençofone e até dois elevadores para conduzirem a comida da cozinha para a sala de jantar, todas as comodidades (e incomodidades) permitidas pelo progresso tecnológico marcam presença naquela casa, surpreendendo a própria alta sociedade parisiense. Largos milhares de livros e publicações periódicas de todos os géneros mal cabem já na ampla biblioteca da casa. Mas de todos os elementos que pertencem ou que rodeiam a vida do seu amigo, nada impressiona tanto Zé Fernandes como Madame d’Oriol, que considera “uma flor da Civilização”. Começa, no entanto, a pressentir-se em Jacinto, extenuado pelas obrigações sociais a que a sua notoriedade pública o condena, um certo cansaço de Paris e da Civilização.

Falhanços sucessivos das engrenagens e maquinarias da casa de Jacinto (a canalização da água quente que rebenta, a eletricidade que falta, o elevador da comida que se avaria, conduzindo à cena caricata em que o Grão-Duque Casimiro tenta pescar o peixe cozinhado, usando como anzol um gancho de Madame d’Oriol) aceleram o fim da crença de Jacinto nas virtudes da Civilização e conduzem-no para um período de abatimento e tédio, temperado pela vivência de experiências sociais e espirituais desencontradas (hedonismo, humanitarismo, teosofismo), que culminam na adesão impetuosa ao Pessimismo de Schopenhauer. Não estaremos, neste passo, perante a representação alegórica da “crise de confiança que atinge a cosmovisão naturalista e, de um modo geral, a crença na suposta coesão de valores do Positivismo”, como registou Carlos Reis (1999: 150) a propósito de outra personagem queirosiana, Fradique Mendes?

Subitamente, Jacinto parte para Tormes, onde uma chuva diluviana tinha destruído a velha igreja em que jaziam as ossadas de várias gerações de Jacintos. Perdem-se na viagem de comboio a mobília e os apetrechos com que Jacinto pretendia tornar mais suportável o seu desterro campestre, mas surpreendentemente o amigo de Zé Fernandes acaba por se adaptar perfeitamente à vida rural, casando-se com uma prima do seu amigo e decidindo fixar-se permanentemente na sua quinta de Tormes. O momento em que Jacinto toma a resolução de partir para Tormes é ilustrado com um deprimentemente significativo retrato físico da personagem: “E nunca o meu Príncipe (que eu contemplava esticando os suspensórios) me pareceu tão corcovado, tão minguado (…). Assim viera findar, desfeita em Civilização, naquele superrequintado magricelas sem músculo e sem energia, a raça fortíssima dos Jacintos!” (Queirós, 2008: 119). Na sua quinta da serra, Jacinto irá rejuvenescer, física e espiritualmente, deixando de corcovar e abandonando, ressentido com Schopenhauer e Salomão (ao qual atribuiu a autoria do Livro de Eclesiastes), o Pessimismo que o atormentara em Paris. A interpretação ideológica da resolução de Jacinto de se fixar permanentemente em Tormes tem dominado grande parte da exegese de A Cidade e as Serras. A personagem, cansada da vida agitada e fútil da cidade, encontra no mundo rural um novo campo de experiências, que surpreende Zé Fernandes.

Também o estatuto ficcional de Jacinto proporciona alguma controvérsia, porque oscila entre a condição de personagem redonda (cuja personalidade distintiva aflora quando se lhe dá voz em primeira pessoa) e a de tipo social. O seu próprio nome pode ser ambiguamente entendido como nome próprio ou apelido familiar. Parece ser apelido, se atendermos ao facto de todos os antepassados de Jacinto serem genericamente designados por Jacinto(s). Mas então como explicar que o pai do amigo de Zé Fernandes seja apenas identificado como Cintinho, incluindo pela própria mãe, e que os aldeões se dirijam ao proprietário de Tormes chamando-lhe Senhor D. Jacinto. Contrariamente ao que acontece com várias outras personagens, incluindo a avó e a mãe de Jacinto e o próprio Zé Fernandes, isto é, José Fernandes Lorena de Noronha e Sande, Jacinto é apenas Jacinto, nome sem apelido ou apelido sem nome.

A hipótese de se considerar que a personagem Jacinto tem um valor semântico fundamentalmente exemplar ou instrumental encontra sustentação no facto de esta já aparecer, com as mesmas caraterísticas, no conto “Civilização”. Não só as duas ficções, descontada a extensão, contam histórias bastante semelhantes, como em ambas se atesta a falência do modelo civilizacional positivista, que Eça reconhece em diversos textos da mesma época, incluindo o intitulado “Positivismo e Idealismo”, que publicou em 1893 na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro.

Marie-Héléne Piwnik analisou as afinidades e as desconformidades dos protagonistas de A Cidade e as Serras e de Peñas Arriba (1895), de José María de Pereda, um romance que Eça poderá ter lido durante o período em que escreveu o seu romance, mas não antes de ter redigido o conto precursor, publicado, também na Gazeta de Notícias, em 1892. Marcelo, o protagonista de Peñas Arriba, é um jovem aristocrata, que abandona, contrariado, Madrid para se fixar numa aldeia cantábrica, Tablanca, acabando por se integrar completamente na vida rural. Há, contudo, uma diferença substantiva entre as duas personagens. Enquanto Marcelo, partilha a postura ideológica do autor e se bate pela manutenção dos vínculos socias de natureza senhorial, ameaçados pela intromissão do sistema político e económico liberal, Jacinto rebela-se contra a situação de extrema pobreza a que estão submetidos os seus caseiros, empreendendo um significativo conjunto de reformas destinadas a melhorar a vida dos camponeses e olhadas com desconfiança pelos outros proprietários rurais. A fé que Jacinto sentia no início do romance numa utopia positivista, segundo a qual a felicidade humana estava firmemente associada ao progresso científico, acaba substituída pela utopia social cristã, referida no artigo “Positivismo e Idealismo”.

 

Referências

PIWNIK, Marie-Héléne (2002). “Peñas arriba e A cidade e as serras: percursos inversos”. In: Congresso de estudos Queirosianos.  Actas do IV Encontro internacional de Queirosianos, vol. I, Coimbra: Almedina-ILLP. 61-74.

QUEIRÓS, Eça de (2008). A Cidade e as Serras. Lisboa: Livros do Brasil.

REIS, Carlos (1999). Estudos Queirosianos: ensaios sobre Eça de Queirós e a sua obra. Lisboa: Presença.

                                                                                                        

                                                                                                                                                     

António Apolinário Lourenço